Paris, Texas (1984) de Wim Wenders, conta a história de um homem chamado Travis Henderson que desaparece durante 4 anos sem ninguém saber porquê. O filme começa com Travis a caminhar pelo deserto do Texas e a encontrar um bar onde desmaia e é ajudado. Foi levado para um hospital, onde durante a sua estadia não disse nada a ninguém, o médico acaba por chamar o seu irmão Walt Henderson para o vir buscar. Depois de uma busca pelo deserto Walt encontra o seu irmão Travis mais uma vez a vaguear e começam a viagem de regresso a casa. Durante a ausência de Travis o seu irmão tomou conta do seu filho juntamente com a sua mulher Anne Henderson. Com o passar do tempo a vida de Travis começa a recompor-se inclusivé já tem uma ligação mais próxima com o seu filho mas ainda não sabe onde é que a sua mulher está, Jane Henderson. Graças a Anne, Travis sabe onde a pode encontrar e vai ao seu encontro levando o filho. Jane trabalha num bordel, no primeiro encontro entre os dois ela não o consegue ver e ele não tem palavras para lhe dirigir. Travis deixa o filho num hotel com uma gravação a explicar que não conseguia mais estar presente na vida dele porque não se perdoava pelas coisas que tinha feito no passado. De volta ao bordel Travis vai falar com Jane mas desta vez vai contar tudo o que aconteceu, o motivo pelo qual se foi embora durante os 4 anos, para ela entender quem ele é. O filme acaba com Travis a ir embora e Jane a ir ter com o seu filho.
Para além de ser um filme memorável pela empatia que Wim Wenders cria entre nós e a personagem principal, pela fotografia minuciosa de Robby Muller é também um critica à sociedade americana que vive numa completa alienação. Podemos notar essa critica quando Anne teme que o casamento com Walt acabe se o filho do irmão se for embora, como se a criança fosse o laço de união do casamento. Mas maioritariamente esta alienação faz-se notar na personagem principal que se afasta por completo da sua vida, sem explicações e sem avisar ninguém. Afasta-se da confusão de uma sociedade em crescimento que a cada dia que passa ganha mais velocidade. Travis quando conta que acorda e está em chamas a primeira coisa que fez foi tentar encontrar Jane e o filho, completamente sem noção que secalhar quem lhe pegou fogo foi ela por causa da relação abusiva que mantinham.
Apesar de não ser um filme que se oiça falar todos os dias, é memorável pela crueza e naturalidade com que demonstra a realidade de uma vida e não de mais um romance ao qual já estamos habituados. E talvez por não ser mais um romance é que este filme continua vivo mas apenas pelo boca-a-boca.
quarta-feira, 17 de janeiro de 2018
domingo, 14 de janeiro de 2018
The Truman Show - Recensão
O filme “The Truman Show” retrata a vida de um homem que desde o nascimento foi criado dentro de um programa de televisão, sendo assistido por milhares de pessoas por todo o país, porém ele (Truman) não tem nenhum conhecimento de que sua vida é uma mentira, que todas as pessoas a sua volta são atores que estão ali apenas para fazer com que sua vida siga de acordo com o script do show, mostrando claramente uma situação de voyeurismo.
A história foi muito bem elaborada, de tal modo que podemos ver traços de programas de televisão que realmente existem (reality shows), somados com um pouco de exagero para criar uma situação que é ao mesmo tempo absurda, e assustadoramente próxima da nossa realidade, nos fazendo questionar o quão longe a indústria do entretenimento seria capaz de chegar para obter mais audiência.
Vemos que, para reforçar a ideia de que é um reality show no qual o personagem principal não tem conhecimento da sua participação, a filmagem desta produção foi feita através de vários ângulos incomuns, de modo a dar a ideia de “câmeras escondidas”.
De modo geral, “The Truman Show” faz uma excelente crítica à cultura da nossa sociedade que é fascinada pela sensação de poder e controle que é passada através de programas nos quais podemos assistir a vida dos outros sem sermos observados de volta, e consequentemente aos nossos padrões de moral.
sábado, 13 de janeiro de 2018
Lady Bird - Recensão
Lady Bird, escrito e realizado por Greta Gerwig apresenta-se como filme de estreia para a realizadora. O filme estreou nos EUA no início de Dezembro do ano passado e tem data de estreia marcada em Portugal para 15 de Março deste ano. Nomeado para diversos prémios, desde a estreia nos EUA, o filme esteve entre os vencedores em várias ‘competições’, como é o caso dos Globos de Ouro onde venceu nas categorias de Melhor Filme de Comédia ou Musical, e Melhor atriz principal num Filme de Comédia ou Musical.
O filme foi gravado em Sacramento, Califórnia e retrata a vida de Christine ‘Lady Bird’ McPherson (Saoirse Ronan). Christine ou ‘Lady Bird’, nome que assume e que atribuiu a si mesma — “I gave it to myself. It’s given to me by me” — vive na pequena cidade de Sacramento com os pais, o irmão e a namorada do mesmo. Frequenta o seu último ano de secundário, numa escola católica privada. O filme retrata pequenos momentos da vida de Lady Bird, as relações que mantém a nível familiar, escolar e romântico, tendo como principal foco a relação entre Lady Bird e Marion McPherson (Laurie Metcalf), a sua mãe. O objetivo de Lady Bird é sair de Sacramento e ir para uma universidade fora do estado da Califórnia. O filme mostra-nos o percurso desta rapariga que quer ser independente e sair do lugar onde sempre viveu, e de todas as restrições que este lhe impõe sejam estas impostas pelos pais, e em especial a mãe, ou pela política de uma escola religiosa. Mostra também as suas experiências enquanto adolescente e o crescimento que advém delas. Uma história de ‘coming-of-age’ que não deixa de focar desgostos amorosos e amizades turbulentas, aspectos já muito trabalhados neste tipo de história, mas que se distingue pela sinceridade com que retrata a relação entre mãe e filha.
Importa focar a relação entre Lady Bird e Marion, que se mostra muito importante no desenrolar do filme. São várias as cenas entre as duas que me ficaram na memória, pelo que vou relatar uma que, a meu ver caracteriza muito bem a sua relação. A cena tem início com Lady Bird e Marion num grande ‘armazém’ cheio de roupa, procuram o vestido perfeito para Lady Bird usar no jantar de Ação de Graças em casa do namorado, Danny. Enquanto procuram inicia-se uma pequena discussão entre as duas, mas assim que Marion encontra o vestido perfeito elas abraçam-se como se a discussão não tivesse acontecido. Neste momento conseguimos perceber que apesar das personalidades muito diferentes de uma e de outra, que muitas vezes as fazem entrar em conflito, elas conseguem superar esses momentos. Relembro-me também de uma fala de Lady Bird a meio do filme em que ela afirma “She hates me” referindo-se a Marion. Os vários momentos em que as duas aparecem juntas, têm sempre uma certa divergência de ideias entre duas. Lady Bird, em crescimento apresenta ainda uma visão optimista de um futuro onde tudo pode ser possível e Marion lhe tenta mostrar a versão mais realista do mundo, embora talvez não o faça da melhor maneira. Os momentos que partilham juntas, e outros que Lady Bird partilha com as restantes pessoas presentes na sua vida, contribuem para o crescimento de Lady Bird e também para uma tomada de consciência de que a mãe estava a fazer o seu melhor para a educar. A realidade crua com que esta relação nos é apresentada, as emoções que tanto Saoirse Ronan como Laurie Metcalf conseguem passar para o espectador são para mim o ponto alto do filme. O facto de o filme não haver qualquer embelezamento no retrato da relação é o que a torna tão real quanto é, e talvez por isso o filme seja tão especial para mim, porque consegui rever — em Lady Bird — muito da minha relação com a minha mãe e da sua evolução.
Mima,Nina,Mina,Nima???
Apropriação ou adaptação cultural?
Uma análise sobre os elementos de Perfect Blue presentes em
Black Swan.
Para quem viu ambos os filmes Perfect Blue e Black Swan apercebe-se
de uma imediata semelhança entre o anime de Satoshi Kon com o live-action de
Darren Aronofsky, respetivamente. Ambos os thrillers psicológicos apresentam personagens
perturbadas e exploram temas com fracturação da realidade e perda de identidade.
Perfect Blue segue a um ídolo Pop, Mima, na sua mudança de
carreira para atriz. Há por parte dos seus seguidores uma dúvida geral de que conseguirá
suceder no seu papel de estreia: uma vítima de violação num crime psicológico de
cariz sexual. Ao longo do filme, Mima começa a perder o sentido de realidade,
misturando a história ficcional em que aparece, com os eventos dramáticos da
sua própria vida. Aquando a cena de violação, há uma conotação catastrófica que
vem com a libertação sexual da personagem, havendo, nesse momento, uma dissociação
daquilo que é, e de aquilo que já foi. A “velha Mima”, um ser transfigurado para
a realidade objetiva, torna-se assim materialização do ídolo pop inocente, para
um fã obsessivo, para a sua gerente Rumi, e para a própria, que é atormentada
por visões da sua imagem popstar que ameaça resgatar o seu passado.
Os seus próximos começam a morrer e com as várias camadas de
ambiguidade da fracturação da realidade, o espectador nunca tem a certeza do
que é que é real e do que é que é uma ilusão, do que a que é feito pela
protagonista e do que é que é feito pela espectativa das outras personagens, e
quanta da violência está efetivamente a acontecer ou se faz parte dos sonhos
delirantes de Mima. Até à cena final, que exibe uma luta entre a personagem
principal e uma ilusão da “ velha Mima” que é na verdade Rumi a projetar as
inseguranças de ambas as personagens em si.
Em Black Swan a protagonista Nina após muitos anos de ser negligenciada
pela sua companhia de ballet, ganha o seu primeiro papel substancial como ambos
os cisnes, branco e negro, numa produção de O Lago dos Cisnes, só para descobrir
que a sua técnica perfecionista está a impedia-la de atuar o mais licencioso
cisne negro
Ameaçando o seu sucesso surge Lily, uma personagem vivaz e
sexualmente livre, cuja técnica não é tao impecável, mas cuja presença compromete
a sua oportunidade de exercer o papel. Há também a problemática da mãe de nina,
uma mulher severa e autoritária que está a viver as suas ambições falhadas através
da sua filha, colocando-a num estado de inocência infantil permanente que é conflituosa
com os desejos sexuais represados da jovem adulta.
Estes desejos materializam-se quando o diretor do projeto pede-lhe
que explore a sua sexualidade de modo a poder atuar o papel, e esta fá-lo (ou
pelo menos acha que o faz) com a antagonista. Como no filme anterior, com esta libertação
sexual dá-se o desenvolvimento do enredo, a personagem começa a ter visões do
seu lado mais sombrio como forma do cisne negro a emergir, começando assim a
misturar o sentido de realidade entre ela e as duas personagens que interpreta,
eventualmente culminado na sua morte.
Num primeiro olhar pode-se entender as semelhanças dos dois filmes
como um acaso, mas sabe-se que o realizador americano comprou os direitos
legais de Perfect Blue para poder filmar uma cena na banheira em Requiem for a
Dream igual à do anime, logo, é clara a influência de Satoshi Kon nos seus
filmes e, apesar de o negar, a influência deste em Black Swan.
A primeira e mais óbvia semelhança esta nos nomes das
personagens sendo distinguidas apenas por uma letra, para além disto, o facto
de que ambas sofrem de dissociação de personalidade que está ligado ao seu corrompimento
sexual. A ídolo pop tem um colapso após gravar a cena de violação, e a
bailarina deixa de ser uma criança no corpo de uma mulher na cena de sexo com a
personagem rival. Ambas as personagens sentem uma imensa pressão na sua
carreira, profissão esta bastante sedutora mas que os filmes fazem questão de
mostrar o seu lado mais sufocante. O desenvolvimento dos filmes apresentam uma
loucura crescente, e ambos expõem alucinações iguais com as mesmas formas de representação
visual. Ambas veem, em reflexos e em fotos, uma imagem igual a si, a qual
julgam ser a pessoa que se estão a tornar, e ambas têm uma figura materna que
põe pressão sobre as suas careiras no caso de mima a sua gerente, e no caso de
Nina a sua mãe.
Será portanto Blac Swan uma adaptação de Perfect Blue? Ou esta
o filme a apropriar-se não só de um trabalho pré existente, como da cultura a
que este outro pertence?
No que toca a apropriações ocidentais de obras orientais
são sempre levantadas questões morais, se por um lado mostra fascínio pelo
trabalho alheio, por outro pega nos seus elementos culturais e aplica-os na
nossa sociedade de consumo, esses significados são produzidos em massa por puro
fetichismo do diferente, ignorando as relações humanas entre os povos. Dito
isto acho que Aronofsky não o fez por malícia, e se não comercializa o seu
trabalho como adaptação de Perfect Blue, nem assume a influência de Kon em
Black Swan (ou por não querer lidar com as questões de “whitewashing”, ou por
se querer distanciar do trabalho do realizador japonês) recolhesse a admiração que
tem por este, e consegue criar, na minha opinião, uma verdadeira adaptação
cultural, sendo por si própria uma entidade separada, pegando nos mesmos argumentos (ainda que involuntariamente) e
tecendo uma narrativa arrebatadora.
sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
Gelado como Conduto - "Room 29"
Languidamente minimalista e suavemente profético, “Room 29” é um sóbrio e elegante testemunho das inquietações que o espaço impessoal e místico de um quarto de hotel (contudo profundamente profícuo em revelações e provações pessoais) pode fazer surgir sobre o sujeito atuante. Mais do que os cinco anos que foram caminho até ao seu lançamento, a obra final é enraizada na experiência de Jarvis Cocker e Chilly Gonzales sobre o calibre intenso e modificador que o cinema pode reter no espectador e a orquestra de emoções e êxtase que podem ocorrer dentro das paredes de um hotel. Confronta os lugares-comuns que um hotel como o “Chateau Marmont” (inspiração real para o álbum) retém - juventude - limite - sexo - ritmo - eficácia - classicismo - rebelião - morte, com o efeito relâmpago de influência que o cinema e a sua Idade de Ouro norte-americana têm tido sobre a humanidade. A junção harmoniosa do sussurro airoso e desprevenido de Jarvis com o piano fluído e tranquilo, em crescendo emotivo, de Chilly Gonzales (com inspiração pós-moderna - de crises de representação e espiritualidade - do japonês Ryuichi Sakamoto) é o trunfo maior. Fazem deste compósito de dezasseis canções, um só soneto de intensa qualidade lírica, nova experimentação na intersecção da pop, electrónica e clássica e de simbiose rica na exploração da vivência pessoal dos músicos em torno do papel aculturalizante das imagens em movimento, com algum retro-gossip sobre eventos ocorridos no Chateau Marmont, Sunset Boulevard. Dentro do espectro rítmico que o álbum impõe, sobressaem sempre a plasticidade e a intimidade que o trabalho dos dois revela. O ouvinte é sempre interpelado por afirmações que nos parecem próximas. As melodias adivinham-se familiares, tímidas e amenas e toda a experiência do álbum torna-se numa viagem através da partilha com as nossas próprias fantasias sobre o espaço-quarto de hotel, as fantasias que ali já foram realizadas e o impacto que este espaço, enquanto catalisador ao novo e à criação de uma cápsula espácio-temporal onde tudo é permitido e esquecido, pode criar no interveniente. Plasmado em: “Is there anything sadder than a hotel room that hasn’t been fucked in?” e “Room 29 is where I’ll face myself alone.”
Tearjerker - faixa 3 -
“You are such a jerk”;
“You are tearjerker” ;
“Everybody always knew
The game that you were playing
You were fooling no-one
So we're glad that you are paying
But still she's gonna cry
Yeah still it's gonna hurt her”
O papel do Tearjerker enquanto forma de entretenimento corrosivo e quase subversivo, dissimulado mas directamente acutilante no seu préstimo - provocar tristeza e choro - é aqui alegoricamente personificado por um idiota que sozinho, num quarto de hotel, espera o fim do seu serviço enquanto vendido à tristeza. A melodia sonhadora embala a figura do parvo sentado na sua cama de hotel, imaculada e contrastante na puerilidade/profanação que admite. É uma canção do século XXI. Transporta o poder da canção como rede social inabalável.
Clara - faixa 5 -
“Clara, dear Clara
Tell me, please do
How come your dear father
Was far smarter than you?
And Clara, dear Clara
What will you do
Now your only daughter
Has taken to the booze
It's a family drama
Though you lack the skill to write it down
'Cos Daddy used up all the ink
Then he took his pen and left town”
Insuflada de humor negro quase pícaro, esta canção é uma ode ao lado negro do hotel (Chateau Marmont). Clara é última filha viva de Mark Twain, que após um casamento falhado e um filho morto, se refugia em bebida e comprimidos num quarto de hotel. Em regime de canção de embalo ao desastre e ao infortúnio, é ironicamente melódica e divertida, uma das mais orquestradas do albúm. Encara o génio familiar desgraçado e, o hotel, como espaço para o desmazelo e a corrida ao poço do fim.
Interlude 2 - Five Hours a Day - faixa 10 -
“The fact of the matter is, if you’re average, you probably grew up watching 5 hours a day. Now, I bet you didn’t spend 5 hours a day talking to your parents.”
Com estas duas frases, ditas pelo historiador David Thomson, é apresentada a bandeja de influências com que as gerações-televisão cresceram. O papel desconstrutivo ao olharmos para o cinema/televisão como agente do nosso próprio passado, leva a uma profunda reflexão sobre o papel deste no crescimento, na família moderna e na hipótese diferenciadora da utópica (ou distópica) retirada do meio das “moving images” da educação pós-moderna.
A Trick of the Light - faixa 14 -
“Ben-Hur is raiding the honesty bar
Cleopatra is taking a shower
Dinosaurs devour room service
Whilst astronauts explore the moon's surface
Isn't it funny it's only a trick of the light”
No final do álbum chega-nos o elogio final à magia do cinema, entre os meandros de uma composição musical em tom heróico e epopeico, o indivíduo que se expõe à fantasia de mundos novos está submerso num limbo realidade-cinema e, apesar de toda a construção de personalidade que o mundo real nos pode oferecer, os eixos adrenalínicos que o cinema oferece são ilimitados, e por isso fictícios. É a homenagem pessoal de Jarvis Cocker e Chilly Gonzales à redentora luz e luz-truque da imagem em movimento.
O ESPELHO, Andrei Tarkovsky - Recensão
Poster de O Espelho , 1975
Andrei Tarkovsky cria uma ideia de meditação acerca da guerra, memória e tempo, conciliando eventos da sua própria vida. O Espelho fala acerca dos pensamentos e memórias de Alexei (representando o próprio Tarkovsky), e do seu mundo enquanto vários estágios da sua vida - criança, jovem adulto e meia idade. O filme fala numa estrutura descontinuada, combinando universos de sonhos e memórias acompanhados de arquivos noticiários.
Neste filme, Tarkovsky trata a ideia de uma justaposição das suas memórias de infância com as de um outro - numa nostalgia e encontro do eu - excepto de que esta ideia é expressa através do uso de memórias. Divide-se em três atos temporais, em diferentes estâncias da idade do realizador e possui uma dimensão autobiográfica que nos contrai a uma reflexão entre o ficcional e o real, entre a subjetividade e a objetividade.
Numa primeira observação deste filme, a confluência e junção das memórias é pouco percetível, tornando o filme resiliente na medida em que se “transforma” entre tempos. As vagas temporais e a recriação ficcional com arquivo surgem sem ordem concreta, com a diferença entre filme a cor e a preto e branco, sendo no inicio um fator de confusão para o espetador. A confusão persiste ao adicionado o facto de dois atores- Margarita Terekhova e Ignat Daniltsev - que interpretam determinado papel a determinado momento do filme, encaram outros em momentos posteriores sem qualquer distinção a nível físico.
O Espelho, Andrei Tarkovsky, 1975
À primeira crítica e observação do Espelho o filme é quase um enredo de memórias e confuso, contudo à medida que com determinado intervalo de tempo e quanto mais é visto, é-nos possível desembaraça-lo - acaba por dar relevância a certos detalhes ou cenas do filme e entender melhor esta narrativa intercalada. A banda sonora acaba por juntar a este filme a nostalgia e por vezes dramatismo que o mesmo cria,
Assim, o filme “Espelho” acaba por se tornar não só uma relação autobriográfica de Tarkovsky como nos acaba a levar a nós enquanto espetadores para um universo de imagens oníricas e carregadas de simbologias, quase que como se tratasse de uma peça musical ou teatro. Um filme que nos surpreende cada vez que é visto e nos encanta a cada uma dessas vezes.
Para alguém que esteja interessado no visionamento do filme, encontra-se no youtube legendado em inglês.
A Sibila
“A Sibila” da Agustina Bessa terá de ser uma das mais cativantes tramas por onde enveredei no último passado ano, num misto de alivio com apoquento o terminei no janeiro que encetou este novo, sem mais o peso confrangedor de ser escravo emocional da página seguinte, mas pobremente órfão, e viúvo, e desamparado na minha totalidade da eloquência seguida e certeira com que Agustina automaticamente acopla o leitor.
Fa-lo subordinado. O seu génio urge, e a obra é como se exigisse ser lida. E eu me apoquentei tão tanto senão por não poder lê-la pela primeira vez, de novo.
A narração corrida, com pouquíssimo fôlego de parágrafos, cadência num compasso de um cantarolar de música vaga.
É o quotidiano essa melodia.
E quanto mais próximo a ela, mais a vertigem abala- porque um país discreto e rural todo compactua na compreensão, mas por menos conterrâneo que seja o leitor, a humanidade presente em cada recanto do romance o acolherá, pertencente, a ver-se, espelhado, pelo menos em alguma das facetas escritas. que aqui comove.
“A Sibila”, que nada oracula porque de tudo faz passado, trata das mulheres, personagens, as narra. É uma rede de carácteres e a ocorrência irresumível. São vozes e alguns ecos, são as recônditas que Agustina dá voz, realidade ,e quiçá, realeza , no delicado teatro com que as disseca.
A voz da própria, chegou á cena literária em quase-década-dos-50, uma mulher que se insinuava com uma inquietante prosa realista, neo-realista, Camiliana talvez, barroca, soberba!! . Dava voz ao feminino, dava voz às luzes e escuridões que o mundo, fechado, desconhecia, não porque se desinteressava, simplesmente desconhecia, então se descortinou a índole mística das mulheres do norte, se descortinou a autora, as personagens, descortinado o novo estilo realista, foi um descortinar extenso, panejando página a página, revelava por muitas folhas escritas o tal quotidiano progredindo que se expande e fixa-se só por gosto. Música ao longe...
“-O casamento é mais que um imperativo da espécie. É a união de dois patrimónios. E as mulheres só gostam dos tratantes- dizia ela como se enunciasse um teorema de geometria “
A trama toda parece divagar, oscilar entre o sim e o não, num talvez constante, na eternidade de cada individuo enquanto dura, e são estatutos e profissões, laços familiares e casos encobertos, nenhum escapa á sua investida lúcida que povoam a obra balofa, irrepreensivelmente, larga destes sem que os restrinja comodamente á representação de um só valor. É um dos picos do desconcerto- quando a personalidade se desdobra e o leitor traz-se a desconfiar mesmo dessa abstração. O carácter que teria admirado ao longo da história estaria crepusculando ao exibir o lado obscuro...
Quina, A sibilesca da novela, articula uma constelação de pertinência em valores, que calceta o pavimento para o impar que se desenvolve.
“Parecia agoniar recitando adeuses, palavras de informação, ou apenas movia os lábios num colóquio infinito, suave.”
“ Acreditando a moça possuída do sobrenatural, vitima ou eleita, não sabiam. Dizia banalidades trechos de vida passada, e deixava os ouvintes suspensos, as almas estremecendo numa volúpia de inquietação curiosidade e esperança.”
Grande parte da narrativa é dedicada a descreve-la, havendo no inicio uma indireta proposta de lhe dedicar toda a restante obra como explicação, e no final uma sugestão de fecho com o seu próprio término. Em meio é mencionado o místico Santo Inácio de Loyola, e rapidamente o leitor mais cuidado, relaciona Quina com Santa Teresa de Ávila, ainda que distintas em propósito e localização, os dotes de ambas intrigam do mesmo jeito.
É a personagem que creio principal, e um pouco duvido já que com as suas duas irmãs divide protagonismo, a chamada “Sibila” que nomeia a totalidade, é um expoente de clareza trágica e demasia lúcida que assombra se real mas fascina romanceada. Conjuga a vulgaridade da conduta humana, na astúcia do cúmulo, ora por gracejar no exagero, ora por o contrair na critica. Acredito que após o excesso de sensação eufórica que o legado literário modernista habituou, digo, viciou o leitor, o neo-realismo não se poderia instalar plenamente sem este entorse no realismo. É uma estranheza que se matiza, e vai estranhando, até que a excitação já nos ardeu, em combustão lenta, na subtileza da percepção. Não se nota na obsessão que nos foca na obra, até que a amamos, e o carácter discreto-bizarro é interlúdio da paixão por este estilo. Quina nos vence assim. Estranha e entranha- “A Sibila” triunfa.
«Ficou na memória, como alguma coisa de dantesco, porém sem esse estertorar espasmódico das cenas infernais, mas antes extraordinariamente discreto, reservado, abafado como um atroador clamor que choca com uma superfície intransponível a ali se prende e ameaça e ruge, mais terrível do que se explodisse na ampliação dos ares, o dia em que a louca desapareceu e não pôde ser encontrada»
Alardeado com o prémio Eça de Queiroz e Delfim de Guimarães, após a primeira publicação seguiram-se edições várias.
A Obra de Agustina é talvez cabeceada por este romance, eleito, mais pelo gosto público, não somente por sua colossalidade.
Para quem conhece melhor a coleção, sabe que outros monumentos se afiguram no conjunto, todavia nenhum tão popular. “A Sibila” foi aclamada por estrondo, não por análise. Foi que apareceu primeiro (é quarta obra), e as vindouras, se a excedem na argúcia, perdem em frescura- mais brusquidão que novidade.
Se é isto condenável porque “o Vale Abrão” é épico e a “Corte do Norte” ainda mais ilustradora do estilo neo-realista é, por outro lado aceitável, já que esta obra reúne em dose comedida elementos da sua produção futura. Atiça o atento para que se atire ao outro e outro romance. São aprimorações da autora.
É, portanto, afinal profética, “A Sibila”, que determina para um futuro o tipo de discorrer literário que encantará todo um idioma, transcendendo gerações, preferências estilísticas, e até o próprio. Pois impera em traduções, Agustina, além fronteiras e mares, espalhando a escrita que domina, nos domínios que estendem a humanidade. É esta que retrata. Caricata e assertiva.
Cloud Atlas - Recensão
Estreado a 29 de novembro de 2012, Cloud Atlas (de Lily e Lana Wachowski e Tom Tykwer) retrata seis histórias que decorrem ao longo de seis eras diferentes. Cada história tem as suas respetivas personagens, cenário, enredo e, consecutivamente, um género diferente. Primeiramente, temos o drama de Adam Ewing (Jim Sturgess), o comerciante de escravos que luta pela sua vida em alto mar. De seguida temos a tragédia romântica do compositor homossexual Robert Frobisher (Ben Wishaw), passada na pré Segunda Guerra Mundial em Inglaterra. Em terceiro, um thriller sobre Luisa Rey (Halle Berry), uma jornalista de investigação que se questiona sobre corrupção numa central nuclear. A quarta história é uma comédia dos dias de hoje sobre um editor de livros confinado a um lar de idosos. Segue-se uma história de sci-fi (e pessoalmente a minha preferida) que se situa no século XXII em "Neo Seoul", cuja protagonista é Sonmi 451 (Doona Bae), uma espécie de robô humano escravo. E por fim, uma espécie de conto de fantasia num mundo pós-apocalíptico onde a humanidade regrediu a tribos primitivas (a personagem principal desta história é Zachry - Tom Hanks), e apenas alguns são possuidores de alta tecnologia e visam sair do planeta.
Cloud Atlas conta com quase três horas de filme e, por isso mesmo, gera muita dúvida em relação ao seu visionamento. É um filme que nos obriga a estar atentos devido às suas diferentes histórias, e que nos faz sentir que se fizermos uma pausa "para ir à casa de banho", sem dúvida que iremos perder alguma parte relevante para o desenvolvimento do enredo/perceção do filme.
Posto isto, o objetivo de Cloud Atlas é centrar-se nessas histórias de modo a mostrar como tudo o que acontece está interligado. Apercebemo-nos disso no filme através de pequenas coisas, como cenários ou adereços que são partilhados em enredos diferentes, ou coisas mais "marcantes" como o "Cloud Atlas Sextet" (que faz parte de um soundtrack que, na minha opinião, faz o filme) que não só forma toda a história passada em 1936, assim como aparece como um canto no meio dos fabricantes de Neo Seoul; numa loja de discos em 1973; e assim por diante (para além disso, o "Cloud Atlas Sextet" também se refere às seis personagens principais e aos seus destinos interligados). É um filme que se centra muito no conceito de reencarnação, mas de um modo em que algo que nós façamos num certo ponto da nossa vida, até mesmo séculos depois, nos irá afetar de alguma maneira.
Outro aspeto que gostaria de destacar é a escolha do casting. Enquanto que as personagens em cada período de tempo são únicas, os mesmos atores representam todos os papéis. Para além disso, há sempre um significado específico para a escolha dos atores. Por exemplo, Hugo Weaving retrata sempre uma personagem associada à opressão, como um comerciante de escravos ou um Nazi; Halle Berry é sempre uma personagem boa, gradualmente crescendo, passando de uma escrava para a salvadora da humanidade; Tom Hanks é geralmente egoísta, exceto quando conhece Halle Berry e se apaixona; assim como Jim Sturgess e Doona Bae, cuja paixão se repete em 1849 e em 2144.
Quanto a este fator, muitos críticos apontaram o dedo ao facto destes diferentes papéis por parte dos mesmos atores necessitarem de mudanças de maquilhagem de tal modo que teriam de mudar de sexo ou raça. Mas essas decisões são temáticas, reiterando a ideia de que todos os seres eventualmente reencarnam em todas as raças, sexos, clãs e situações. Independentemente de acreditarmos ou não nesta noção, o filme faz um ótimo trabalho a expressá-lo, ultrapassando o problema de se poder perder no que é politicamente correto.
Resumindo, Cloud Atlas trata-se de um filme único que, embora não seja do agrado de muitos (talvez por não ser o típico "entretenimento relaxado"), é um filme que retrata, de uma maneira profunda e provocante, a condição humana. É uma obra que pode não apelar muito às massas mas que, na minha opinião, se tornará um clássico intemporal, visto ser bom demais para se tornar noutra coisa qualquer.
Cloud Atlas conta com quase três horas de filme e, por isso mesmo, gera muita dúvida em relação ao seu visionamento. É um filme que nos obriga a estar atentos devido às suas diferentes histórias, e que nos faz sentir que se fizermos uma pausa "para ir à casa de banho", sem dúvida que iremos perder alguma parte relevante para o desenvolvimento do enredo/perceção do filme.
Posto isto, o objetivo de Cloud Atlas é centrar-se nessas histórias de modo a mostrar como tudo o que acontece está interligado. Apercebemo-nos disso no filme através de pequenas coisas, como cenários ou adereços que são partilhados em enredos diferentes, ou coisas mais "marcantes" como o "Cloud Atlas Sextet" (que faz parte de um soundtrack que, na minha opinião, faz o filme) que não só forma toda a história passada em 1936, assim como aparece como um canto no meio dos fabricantes de Neo Seoul; numa loja de discos em 1973; e assim por diante (para além disso, o "Cloud Atlas Sextet" também se refere às seis personagens principais e aos seus destinos interligados). É um filme que se centra muito no conceito de reencarnação, mas de um modo em que algo que nós façamos num certo ponto da nossa vida, até mesmo séculos depois, nos irá afetar de alguma maneira.
Quanto a este fator, muitos críticos apontaram o dedo ao facto destes diferentes papéis por parte dos mesmos atores necessitarem de mudanças de maquilhagem de tal modo que teriam de mudar de sexo ou raça. Mas essas decisões são temáticas, reiterando a ideia de que todos os seres eventualmente reencarnam em todas as raças, sexos, clãs e situações. Independentemente de acreditarmos ou não nesta noção, o filme faz um ótimo trabalho a expressá-lo, ultrapassando o problema de se poder perder no que é politicamente correto.
Exposição «Meus pequenos amores/my little loves», Sharon Lockhart — Recensão
Numa visita ao Museu da Coleção Berardo, tive a oportunidade de ficar a conhecer a obra de Sharon Lockhart, artista norte-americana que tem vindo a desenvolver trabalho — no âmbito da fotografia e do vídeo — sobre a temática da infância e da adolescência na Polónia. A exposição está alojada no piso -1, numa sala comprida, escura e de teto baixo. As fotografias emolduradas e projeções vídeo estendem-se pelo corredor compartimentado e, a meu ver, perdem força pela carência de amplitude expositiva e luminosidade.
O sugestivo título da exposição «Meus pequenos amores/my little loves» suscita, à partida, a existência de uma forte relação da artista com as crianças e adolescentes fotografados, como se as imagens em questão contassem não somente a história do retratado, mas também a de Sharon Lockhart, que se coloca atrás da câmera. De facto, o que me despertou interesse em visitar esta exposição foi o facto de, no passado, já ter trabalhado com crianças e de me ter ocorrido documentar essa experiência através de um registo fotográfico.
“Recentemente perguntaram-me como é que eu tinha feito a diferença na vida destas miúdas... Fiquei espantada, porque a pergunta devia ser ao contrário — foram elas que me mudaram, sou eu que já não sou a mesma.” [1]
As fotografias são visualmente sugestivas, devido aos seus fortes contrastes cromáticos e brilho intenso, que por vezes sugerem uma relação de semelhança com a pintura a óleo. Contudo, no decorrer da visita, o que me despertou mais a tenção no conjunto foi a qualidade de estudo e de encenação das obras. Isto é, a sensação de que os retratos, apesar de autênticos, foram altamente ponderados e que na sua composição não se equaciona o fator «acaso». De facto, a utilização da câmera fixa e as sequências narrativas sugerem o recurso à reencenação.
[2]
A personagem «Milena» é recorrente na obra de Lockhart, tendo sido ela quem a introduziu ao centro de Rudzienko, palco onde foram captadas grande parte das obras expostas. A observação da sequência de três fotografias, patente acima, foi para mim particularmente curiosa porque só num último momento, me é revelado o rosto da retratada, ainda que com alguma reticência.
Já no final da visita, na última sala, deparei-me com várias de cópias de uma folha de jornal polaca, que havia sido traduzida para português e que podia ser levada pelos visitantes. Só mais tarde, ao pesquisar, fiquei a saber que se tratava de reprodução do suplemento semanal «A Pequena Revista» escrito por crianças e publicado com o diário judaico «A Nossa Revista», entre 1926 e 1939. Saí da exposição com um exemplar na mão e de seguida, nos transportes, li alguns excertos. Na minha perspetiva, são pequenas subtilizas como esta — uma folha que pode ser levada para casa — que enriquecem a experiência do visitante, fazendo com que este tome a liberdade de fazer uma segunda reflexão acerca do que viu, ainda que já não se encontre no local.
[1] Lockhart, S. (Entrevista). Aqui Toda a Vida é Encenada. Canelas, L. Jornal Ípsilon. Acessível em: https://www.publico.pt/2017/10/25/culturaipsilon/noticia/aqui-toda-a-vida-e-encenada-1790060
[2] Milena, Jaroslay, 2013, 2014. Três provas cromogéneas com moldura.
Rita Russo | 10652 | Design de Comunicação
Gordon Matta-Clark (1943-1978) Splitting, cutting, writing, drawing, eating
Tive a sorte de ir conhecer obras de
Gordon Matta Clark numa exposição da Culturgest.
Este artista tem um legado que sai
completamente do normal pela escolha dos suportes em que trabalha, pelo facto
de apenas recortar, pela relação espacial que tinha com elas mas também temporal;
pelo tempo de vida que tinham as suas obras. A exposição, na minha opinião,
consegue levar o espetador a acompanhar o momento da experiência, o instante da
criação de Matta Clark. Acredito que permite ao espetador retirar muito mais
das obras expostas, pois participa um pouco melhor no processo, desde a inspiração
à realização.
O “barro” do artista são edifícios, edifícios abandonados.
Um escultor escolhe um material e tenta dar-lhe o seu espaço, dar-lhe voz, e Matta
Clark recortando pedaços das casas dava-lhes todo um novo significado, o de
peça de arte, de escultura. O recorte é um elemento muito leve, que joga com a
luz e a exposição acompanhava esta leveza que advinha da força e violência do
serrar, e remover. (Um dos meus toques preferidos foi a forma como as
fotografias da obra Bingo estavam expostas lado a lado a formar uma panorâmica
com um aspeto “manual” tão semelhante ao gesto violento mas simultaneamente
delicado do Gordon Matta Clark.) As fotografias da
exposição incidiam especialmente nas entradas de luz. Permitiam perceber a
brincadeira que Gordon Matta Clark provocava entre o cheio e o vazio, a luz.
Um aspeto muito curioso foi o de que em vários
dos projetos, o artista desenhava apenas sobre o próprio edifício, sem isto ser precedido por nenhum esboço. Isto revela de casualidade na intuição, de
simplicidade do ato criativo. E a exposição ecoava desta simplicidade e “cleanness”
por não recorrer a muitos estímulos, cores, provocações.
Outro elemento relevante na expressão
de naturalidade foi a forma como estavam expostas de forma linear, meio
desestruturada as curtas espontâneas anotações, ideias, reflexões, (entre
outros documentos escritos como correspondências), do artista.
Também achei importante que o
espetador se pudesse imaginar na situação, no momento do processo. Um vídeo,
que apesar de ser a filmagem da única obra que não foi realizada num edifício mas
sim numa árvore (consistia em pessoas penduradas em redes a cair da árvore) dava
especialmente ao espetador a perceção do forte envolvimento espacial, da
presença física do artista nos seus edifícios, com as suas matérias-primas.
E muitas outras obras que foram
apresentadas através de vídeos, ou de fotografias e que assim nos mostravam o
próprio artista em ação, a estar no local
da sua criação, contribuía para essa perceção.
A questão da efemeridade da obra também
teve eco nos vídeos, em que se acompanhava um momento, um processo, um processo
que se arrastava mas que estava a ser vivido intensamente porque estava prestes
a terminar. (O vídeo de uma das obras em especial filmava a própria demolição
da casa...!) E imagino que isso aproxime o espetador da realidade do artista e que este portanto possa procurar, um pouco melhor, percebê-lo.
Achei que apesar de todas as mais-valias que havia em que as obras fossem apresentadas em vídeos achei que teria sido preferível ter
colocado fotografias retiradas dos vídeos (“screenshots”) a acompanhar estes
vídeos, para que o espetador pudesse observar com mais detalhes as várias fases
da obra resultado.
A Cena do Ódio, de Almada Negreiros
Li pela primeira vez estes versos, na ténue e até frágil sensibilidade dos meus 15 anos. Admito que na altura, pouco consegui extrair do poema que me fosse concreto; havia algumas “buzzwords” que mais me chamavam à atenção: “Sou Vermelho-Niagára dos sexos escancarados nos chicotes dos cossacos!”
Sabia lá eu o que eram sexos escancarados, cossacos, ou um Pan-Demonio-Trifauce, mas a maneira com que Negreiros escrevia cada verso apelava-me de uma maneira incontornável, a sua escrita falava-me tão intimamente que apenas lia, pois soava tão erradamente bem.
“A Cena do ódio”, bem como vários outros títulos de poemas de Almada Negreiros, apela à revolta e inadmissão de valores conservadores perante a revolução de 14 de Maio de 1915, paralelos à receção e crítica d’Orpheu enquanto publicação legítima e inovadora. A data é referida na mesma introdução do poema, assim como a menção de que se tratam de “excertos de um poema desbaratado escrito durante os 3 dias e 3 noites” que a mesma revolução durou.
“Tu arreganhas os dentes quando te falam d’Orpheu
e pões-te a rir, como os pretos, sem saber porquê.
E chamas-me doido a Mim
que sei e sinto o que Eu escrevi!
Tu que dizes que não percebes;
rir-te-hás de não perceberes?”
A pluralidade quase megalómana da expressão que se apodera da obra de Almada Negreiros nunca passa despercebida, a riqueza expressiva dos inúmeros vocativos, de pontuação, da indignação demarcada para com o presente com o qual se deparou, todas estas características da sua obra podem ser (re)visitados através deste poema. De uma maneira quase irónica, observo o quão universal e intemporal a raiva e angústia de Almada Negreiros é para com o mundo; para com “pindéricos jornalistas”, “robertos fardados”, “beleza canalha” e ““sanfona-saloia do fandango dos campinos”, para nomear alguns.
É expressamente revoltado porque não o deixam ser, ou porque lhe “ladram a vida” apenas por fazer o expectável e a viver. Há uma tremenda sobeja nele quando endereça todas as entidades que não ousam deixá-lo ser;
Curiosamente foi essa mesma “crítica” que esgotava todas as publicações de Orpheu, edição após edição, pois apesar de degenerados, loucos ou apenas iludidos, estes homens revelaram-se uma força definitiva na arte da palavra, e quanto a Negreiros, na Arte, ponto final.
Este poema foi descrito pelos seus contemporâneos enquanto sendo definidor da vanguarda da época, e um verdadeiro “grito de raiva atávica”. Apesar do mesmo, e da violência que o marca, poder ser de alguma forma legitimado pelas circunstâncias de cariz bélico, denota-se que a mesma agressividade com que Negreiros se dirige à dita “revolução”, da mesma maneira pode ser aplicada somente aos seus contemporâneos atacantes que insistiam nas suas acusações e reforças de que o artista era apenas louco.
Perante a leitura de qualquer um, ou a plenitude de todos estes versos, é-nos impossível não refletir no quão arrebatadora a mensagem presente é. Há um misto de emoções ligadas à paixão efervescente e raivosa de Almada enquanto afirma ser quase omnipotente no que faz e diz, no que é; uma multiplicidade de matéria e alma como se fosse uma força que ainda não foi legitimamente reconhecida pelos seus pares.
“Sou ruinas razas, innocentes como as azas de rapinas afogadas. Sou reliquias de martyres impotentes sequestradas em antros do Vicio e da Virtude. Sou clausura de Sancta professa, Mãe exilada do Mal, Hostia d'Angustia no Claustro, freira demente e donzella, virtude sosinha da cella em penitencia do sexo! Sou rasto espesinhado d'Invasores que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.”
A vigorosa e quase destemida atitude com que Almada declama cada verso entranha-se-me nos olhos, ouvidos e poros. Não há como não sentir a fúria permear cada centímetro do eu poético que se depara com tão inderrogável maneira de ser, de se revoltar, de se negar a conformismos e insistir em contrariar pelo seu próprio bem e futuro da Arte como a conhecemos. Que não iria ser uma qualquer calúnia ou ataque à sua sanidade mental que o iria parar, que ele é tão mais colosso do que qualquer praga que lhe possam rogar.
“Hei-de, entretanto, gastar a garganta a insultar-te, ó bêsta! Hei-de morder-te a ponta do rabo e pôr-te as mãos no chão, no seu logar! Ahi! Saltímbanco-bando de bandoleiros nefastos!”
“A Cena do Ódio” é, pessoalmente, um ponto de choque e viragem na perceção contemporânea de Negreiros sobre as reformas do pensamento e criação artística; da negação aos que negam a própria mudança, “Uma bofetada na cara do gosto público”, um chuto nas noções deveras ultrapassadas do que é legítimo na era literária que o rodeava, um pêro em quem o duvidava.
Negreiros não receia invocar nomes horripilantes cujas sílabas carregam tragédia, sede sanguinária ou um puro apetite por destruição, tal como Átila e Nero; temas como Pompeia, Sodoma, “corrente com suores do Brazil”, e “sete pragas sobre o Nilo”.
“Larga a cidade masturbadora, febril, rabo decepado de lagartixa, labyrintho cego de toupeiras, raça de ignobeis myopes, tysicos, tarados, anemicos, cancerosos e arseniados! Larga a cidade! Larga a infamia das ruas e dos boulevards, esse vae-vem cynico de bandidos mudos, esse mexer esponjoso de carne viva, esse sêr-lêsma nojento e macabro, essess zig-zag de chicote auto-fustigante, esse ar expirado e espiritista, esse Inferno de Dante por cantar, esse ruido de sol prostituido, impotente e velho, esse silencio pneumonico de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!”
Há uma certa unanimidade na categorizarão deste poema enquanto uma obra esteticamente futurista, pelos motivos violentos e sensuais que carrega em si, havendo menções explícitas de masturbação, inferno, tarados, chicotes, entre outras expressões que demarcam, sem dúvida, a agressividade pelo progresso e não conformismo que o movimento futurista tanto apregoa. Também me salta desde sempre à atenção o próprio espírito destemido de Almada Negreiros em denunciar os seus antepassados e contemporâneos e o desleixo em relação às artes, mencionando que o mesmo povo que se regozija e vangloria por ter criado Camões no seu berço (o próprio país), foi o mesmo que o deixou, em carreira desmoronada, morrer à fome.
“E inda há quem faça propaganda disto:
a pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões! ”
É-me dificílimo analizar escrupulosa e meticulosamente esta obra, que tanto me dizia na altura sobre o tempo em que o artista viveu, como me diz sobre o tempo em que agora me deparo. Enquanto jovens, a formarmos-nos numa Academia que preza gerar novos e hegemónicos movimentos artísticos, considero indispensável não deixar de olhar para artistas e poemas como estes, e que haja sempre alguém com tal destemido, que nunca deixe o palco artístico de Portugal cair sobre si próprio, por aparências ou falta de resiliência, que nunca deixemos o panorama das artes em que participamos cair em desuso, aborrecimento, hábito ou ferrugem.
poema aqui
ou poderá decarregar/consultar o arquivo do Projeto Gutenberg sobre as obras Almada Negreiros (em específico) aqui
Blade Runner - Recensão
Um dos aspectos que acho curioso quando me deparo com filmes de ficção científica dos anos 70 e 80 é a forma como as pessoas imaginavam que o futuro iria ser. Carros voadores, robôs hiper realistas, hologramas, tudo no então longínquo ano de 2007 (por exemplo). Dito desta forma, as expectativas que haviam parecem quase absurdas, mas é interessante reflectir o que motivou as pessoas a fazerem este tipo de previsões, e mais assustador, o que é que acertaram sobre o nosso presente. Assim, falemos Blade Runner.
Dirigido por Ridley Scott, é baseado no romance Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick, e conta com actores como Harrison Ford, Rutger Hauer ou Sean Young. Apesar de não ter sido muito popular quando saiu, Blade Runner tem vindo a ganhar popularidade ao longo dos anos, atingindo o status de cult classic e tornando-se um paradigma da ficção científica, que ainda hoje inspirou obras como, por exemplo série a série de manga Ghost in the Chell.
O filme original saiu em 1982 mas o ano passado saiu uma sequela, Blade Runner 2049, que contra as expectativas, achei um filme bastante bom, talvez um do melhores que vi em 2017. Apesar de ser uma sequela, aguenta-se muitíssimo bem individualmente e expande o mundo do primeiro filme sem destruir o que este conseguiu. Ainda assim, se tivesse que escolher entre os dois, seria uma luta renhida, mas optaria pelo primeiro.
A narrativa passa-se em Los Angeles no ano de 2019, onde carros voadores, colónias espaciais ou andróides virtualmente idênticos a seres humanos, a que chamam Replicant, são uma realidade. A serie mais recente, Nexus 6, a mais avançada é mais forte e tão inteligente quanto um ser humano. Estes são utilizados como escravos em trabalhos diversos, e após um motim, são proibidos na Terra. Equipa de polícias especais, com o nome Blade Runners, tem a função de “retirar” todos os replicant que desobedecem a ordens.
Esta é sensivelmente a informação que nos é dada antes do verdadeiro início do filme, nos opening titles, ao estilo clássico dos anos 80, num pequeno texto. Imediatamente a seguir cortamos para primeira vista da da cidade de Los Angeles em 2019, uma das minha cenas favoritas. Não possível ver onde começa ou acaba a cidade e a sua silhueta parece infinita. Não é possível ver detalhes nos edifícios, apenas as suas luzes que se estendem como um tapete de estrelas. O que mais se destaca são estas chaminés de onde saem nuvens de fumo e de fogo e enquanto espécie de veículo que atravessa o céu. A música que acompanha é por um lado clama e surreal, mas em conjunto com a imagem da cidade ganha um caracter triste e algo monótono. Ao longe vemos um edifício com uma silhueta diferente, quase uma pirâmide, mais alto e com uma silhueta claramente diferente dos restantes arranha céus. A grande estatura faz com que pareça que vigia toda a cidade. Enquanto nos aproximamos a música ganha uma intensidade diferente, dando a impressão que algo não está bem.
Na minha opinião, isto é o que destaca Blade Runner como filme: a atmosfera. O conjunto entre aquilo que vemos e ouvimos submerge-nos na história que pretende contar. Basta apenas a primeira cena para conseguirmos perceber perfeitamente o caracter do filme.
A personalidade por detrás da música, o compositor grego Vengelis utiliza uma mistura de sintetizadores e instrumentos de cordas para criar o característico zumbido recorrente ao longo do filme, que pretende recriar o ruído permanece da cidade e dos seu habitantes. Melancólico mas misterioso.
Por outro lado o aspecto da cidade de Los Angeles de 2019 conta com a colaboração de nomes como Syd Mead, também responsável pelo design de filmes como Tron ou Star Teck. A chave para criar um paisagem de ficção cientifica é o balanço entre elementos que existem na realidade e o que “vem do futuro”. Tudo tem um aspecto claramente futurista mas ao mesmo tempo familiar. No caso de Blade Runner, o futuro imaginado não é uma versão utópica, mas sim realista. A cidade está sobrecarregada, os edificamos altos dão uma sensação quase claustrofóbica às ruas, a chuva permanente trás uma sensação de tristeza e reflete as luzes intensas da cidade. Todos os locais estão repletos de detalhes, mas não sobrecarregam a imagem, mostram uma sociedade estratificada
Finalmente, não podemos passar sem abordar o tema filosófico da narrativa. Há questão da exploração dos Replicant, a forma como foram criados especificamente para servir a humanidade e que é que isso diz sobre a sociedade de 2019. Onde acaba a máquina e começa o homem? O que faz de nós verdadeiramente humanos? A melhor parte é que o filme nunca nos dá respostas específicas as estas perguntas. Não há uma moral da história definida. A única coisa que temos é uma sucessão de eventos que ocorre na narrativa em consequência das opiniões e respostas das personagens a estas questões. De resto, somos obrigados a tirar as nossas próprias conclusões.
Finalmente só me deixa recomendar que dêem uma vista de olhos ao filme. Há muitos mais aspectos interessantes que eu não pude abordar. O meu objectivo foi tentar revelar o menos possível em relação à história e às personagens, tentando focar-me nos aspectos visuais. Recomendo também que vejam também o novo que saiu o ano passado. O nosso presente pode não ser o futuro idealizado de muitos dos filme retratavam nos anos 80, mas já estivemos mais longe. Quem sabe se corresponderemos ao futuro de 2049.
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