sábado, 23 de dezembro de 2017

A deusa

Debruço-me sobre a exaltação da tecnologia, do caloroso abraço ao metal, sobre o quão indispensável nos é algo que é, de facto apenas um carro; de como tratamos um objecto ou algo material, por vezes melhor do que tratamos a singela essência de um ser humano.

Ao ler o texto de Roland Barthes, entitulado de “O novo Citroen“, o meu pensamento é inundado com uma espécie de impressão no fundo de minha cabeça, uma dormência da qual não me consigo livrar. Após reler algumas das passagens do artigo, começo por me aperceber que qualquer possível trecho deste texto seria passível de adornar um outro qualquer parágrafo de uma carta de amor à máquina, de uma dedicatória a uma engrenagem qualquer; enfim, a palavra que quero de facto introduzir de modo a desenvolver a questão é mesmo a de “ode”. Ode esta que me leva à mesma associação que a minha cabeça tanto quis fazer ao ler o texto de Barthes: A exaltação que é feita de um, agora, mero chaço em rodas, é a mesma que outrora li, numerosas vezes, presentes em versos de Álvaro de Campos, mais especificamente na emblemática Ode Triunfal. 


Recordo-me algo chocada ou apenas perplexa pela quantidade de emoções que o poeta transpunha para papel acerca de algo que me parecia, mesmo na sua quinta-essência, ser meramente útil, mas nunca digno de toda aquela euforia, idolatria ou adoração. Após uma mais cuidadosa e até madura reflexão, apercebi-me de que o que ambos estes autores descrevem, na panóplia de escritos futuristas em que já consegui tocar, é algo tão maior que nós, mas simultaneamente um prolongamento do ser humano. 

O próprio nome do automóvel, figura nele um wordplay: D-S, lido em francês, onde o modelo nasce; Déesse, deusa. Será algo problemático associar a feminilidade ou dar a uma máquina algo que transcende, na etimologia das coisas, uma mulher mortal? Será escárnio ou desdém, experienciar uma peça de literatura que descreve uma pilha de engrenagens, metais, locomotivas, o mesmo futuro e progresso da indústria, com a formosura de uma mulher esbelta? Há espaço para comparações e analogias, no entanto há também um ponto fulcral sob o qual refleti, relativamente ao artigo de Lucia Re "Futurism and Feminism" em que é abordada a questão sexual e feminina implícita na literatura futurista, que se revela, sem qualquer apologia ou ressalto contraditório, como sendo uma doutrina abertamente misógina, que não tem qualquer problema em excluir as mulheres da sua narrativa ou expansão enquanto movimento artístico e humano. 
Sendo possível observar a esporádica participação da mulher enquanto artística, mas a sua figuração presente em inúmeras obras, pergunto-me qual é o valor do feminino neste movimento, e será que o mindset de que é aceitável a feminilidade figurar na Máquina, mas não no estandarte artístico ainda se apresenta como uma realidade? 
Barthes refere-se a esta deusa enquanto arte humanizada, e uma "metamorfose na mitologia automobilística", ao ler o mesmo artigo na língua inglesa é-me possível sentir com mais intensidade, até, o que Barthes e o mundo sentem aquando da observação desta deusa:

        "it is the great tactile phase of discovery, the moment when visual wonder is about to receive the reasoned assault of touch (for touch is the most demystifying of all senses, unlike sight, which is the most magical). The bodywork, the lines of union are touched, the upholstery palpated, the seats tried, the doors caressed, the cushions fondled; before the wheel, one pretends to drive with one's whole body. The object here is totally prostituted, appropriated: originating from the heaven of Metropolis , the Goddess is in a quarter of an hour mediatized, actualizing through this exorcism the very essence of petit-bourgeois advancement." - Roland Barthes, O Novo Citroen - in Mitologias, 1957

Concluo esta reflexão por reafirmar que revejo a essência do progresso e a mesma euforia de ver o mundo a eclipsar o passado desnecessário ou negro, e a pavimentar para todos nós um universo onde o triunfo da tecnologia pode continuar a metamorfosear-se neste movimento. No entanto, sublinho que todos nós temos direito a um lugar no progresso, e que ao prezarmos manter um "sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho", continuemos a manter no nosso íntimo a nossa qualidade crua e humana que veio antes de qualquer locomotiva ou cilindrada.


beatriz neto, pintura, 11133

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