domingo, 31 de dezembro de 2017

Campos de Vida – Sonia Falcone (Recensão)

Sonia Falcone é uma artista boliviana.
Campos de Vida é o nome da sua exposição que esteve patente no Palácio Nacional da Ajuda e é uma combinação da História de Portugal com a arte contemporânea latino-americana e também uma união de culturas.

A artista explora vários materiais, com todas as cores para representar diversos países de forma a promover a unidade destes.
Há um grande contraste das suas obras, cheias de vida, cor e energia com a decoração neoclássica do Palácio, mas a disposição das obras foi muito bem conseguida.
Ao olhar para as grandes janelas não vemos a paisagem com o Rio Tejo ao fundo e sim paisagens aquáticas da América do Sul como o lago Titicaca ou nenúfares amazónicos, são fotografias em caixas de luz. Na mesma sala, ao centro, uma representação de um oceano iluminado.
              
Numa sala há um vídeo-animação, projectando na parede borboletas a voar, representando a migração de povos. Noutra, uma animação virtual, um coração real flutuante a pulsar e o som das batidas a preencher a sala, faz-nos lembrar quão frágil é a vida. Também a instalação ''Gotas de Sangue'' nos leva novamente a essa reflexão, são bolas de vidro de diferentes tamanhos com liquido vermelho, representando os anos de vida e os seus sofrimentos.
              
Ao entrar noutra sala, muito ampla, sentimos um aroma agradável e vemos um ''Campo de Cor'',
é a obra de destaque da artista, constituída por recipientes com especiarias de todo o mundo. As cores evocam, mais uma vez, a unidade. É essa união, das cores e dos odores, que a tornam interessante.
              

A artista conseguiu combinar histórias, culturas, o antigo e o novo, passado e presente.

Cor, natureza, vida, unidade são as principais características da sua obra.





REPRESENTAÇÕES CULTUAIS

Edward Said, com o seu livro Orientalism, publicado em 1978, revolucionou o estudo do Oriente. Nele o educar a sociedade ocidental sobre os povos de certas partes da Asia, Norte de Africa e Médio Oriente era o principal objetivo. Este filosofo da Palestina, realça a forma como os países do ocidente distorceram a realidade das pessoas e lugares do oriente através de pinturas, onde, por exemplo, se representa a mulher, sexualmente, num ambiente misterioso, o exótico e o mundo da viagem, o que criou uma imagem errada da história e realidade orientais, idealizando, para os europeus, o que não é real.
Paralelamente, acontece que, atualmente, as redes sociais alimentam a sociedade com falsas informações, através muitas vezes de estereótipos, processo abordado por Edward Said. Os meios de comunicação, globais, atribuem cada vez mais características ao Médio Oriente que não coadunam com a sua realidade, negativizam-no, tornam-no numa ameaça para o mundo ocidental, para os povos, tornam-no em nações frias e anti paz.
“The secular world is the world of history as made by human beings. Human agency is subject to investigation and analysis, which it is the mission of understanding to apprehend, criticize, influence, and judge. Above all, critical thought does not submit to state power or to commands to join in the ranks marching against one or another approved enemy. Rather than the manufactured clash of civilizations, we need to concentrate on the slow working together of cultures that overlap, borrow from each other, and live together in far more interesting ways than any abridged or inauthentic mode of understanding can allow. But for that kind of wider perception we need time and patient and sceptical inquiry, supported by faith in communities of interpretation that are difficult to sustain in a world demanding instant action and reaction.” -Edward Said, in Orientalism
Isto demonstra a facilidade com que o ser humano se manipula, para acreditar numa realidade não existente, um ser racional a entrar numa armadilha de informações falsas criando conclusões precipitadas e acabando por agir incorretamente perante acontecimentos que lhes foi apresentado, mas falsos. Contudo, este nosso defeito que rebaixou raças, comunidades, tradições, gostos e preferências, que originou eventos inapropriados em que só depois de descoberto o erro, de descoberta a verdade, nos apercebemos das nossas falhas, não nos faz querer melhorar, pelo contrário, falhamos continuamente, sem aprender com os nossos antepassados. Deixamo-nos fluir pelo que nos foi dito, fazendo de nós um animal ensinado e não autodidata, que não sabe o motivo pelo qual age, um animal racional que se resume a um conjunto de referências. Só no raro momento em que pensa por si próprio e reconsidera as informações que recebeu, acreditadas como factuais, verdadeiras para ele, portanto, pensando de outra forma, é que passará a ser visto como um herói, ou um criminoso!
“Knowledge means rising above immediacy, beyond self, into the foreign and distant. The object of such knowledge is inherently vulnerable to scrutiny; the object is a ‘fact’ which, if it develops, changes, or otherwise transforms itself in the way that civilizations frequently do, nevertheless is fundamentally, even ontologically stable. To have such knowledge of such a thing is to dominate it, to have authority over it.”  -Edward Said, in Orientalism

sábado, 30 de dezembro de 2017

Consumismo


Cada vez mais, há uma necessidade de consumo em massa, principalmente nesta época do ano, mas isso deve-se ao apelo que os media exerce sobre a sociedade.

O consumismo teve o seu surgimento após a revolução industrial no século XVIII, o que levou ao aparecimento de uma sociedade de consumo. Esta sociedade consumista teve o seu aparecimento devido a haver uma dificuldade de escoar produtos, criando assim, a partir dessa altura estratégias de marketing extremamente agressivas, sedutoras e também uma facilidade de crédito, tanto pelas empresas industriais e de distribuição como pelo sistema financeiro. A industrialização agilizou o processo de fabricação, o que não era possível durante o processo artesanal, com a industrialização houve um desenvolvimento, num modelo económico liberal, que hoje leva ao consumismo alienado de produtos industrializados.

Devido à sociedade criar padrões que se vão multiplicando pela mesma, alcançando assim diferentes classes sociais, tanto as classes mais baixas como as classes sociais mais altas, todas são influenciadas pelos cortes de cabelo, roupa, sapatos, que são utilizados pelos icons da moda.

Com o consumismo, as pessoas deixam de lado o que é necessário adquirir pondo como prioridade coisas superficiais criando assim dividas e contratempos que se não fossem impulsionadas pelo marketing e publicidade pensariam duas vezes antes de as adquirirem. Mas é quase impossível não serem influenciadas, devido a existirem diferentes estímulos que são exercidos nos compradores para que exista maior consumo, estimulando o sentido visual, olfativo e auditivo.

Sendo assim, pode-se dividir o comportamento que um consumidor detém, em comportamento racional, impulsivo e compulsivo.
O comportamento racional é onde o consumidor sabe o que quer comprar e compara preços, mas não deixa de ser influenciado pelas promoções e pela publicidade. O comportamento impulsivo é o ato de comprar para canalizar o stress sendo sempre influenciado pelos melhores preços sem ter necessidade de comprar o produto. O comportamento compulsivo é onde há uma necessidade extrema de comprar, mesmo que não tenha a necessidade de o adquirir.

Mas afinal vamos continuar a ir atrás de uma sede de consumo abismal?


“Linguistique Générale”

Ferdinand de Saussure nasceu em 1857, na Suíça e morreu em 1913, viveu apenas 56 anos. Saussure desenvolveu um grande interesse por línguas e apesar de não ter vivido muitos anos, estudou inglês, grego, alemão, francês, sânscrito, celta e indiano.

O objetivo dele era que a Linguística fosse definida como uma Ciência, mas para isso era necessário que se estabelecesse um método. Portanto estudou muito o objeto da Linguística, a língua. Acabou por dar três cursos de Linguística Geral, na Universidade de Genebra, Suíça: o primeiro realizou-se em 1907 e teve seis alunos matriculados, o segundo teve início em 1908 e teve onze alunos matriculados e o terceiro aconteceu em 1910 com doze alunos matriculados.

Como se pode observar, o número de matriculados não era muito elevado e, tendo em conta que Saussure não deixou publicações escritas, o que nos chega hoje sobre os seus ensinamentos vem maioritariamente no “Cours de Linguistique Générale”, escrito pelos seus alunos, ou seja, é uma “versão contada por terceiros”, uma versão redigida pelos recetores das suas ideias.

«Je me trouve placé devant un dilemme: ou bien exposer le sujet dans toute sa complexité et avouer tous mês doutes, ce qui ne peut convenir pour un cours qui doit être matière à examen. Ou bien faire quelque chose de simplifié, mieux adapte à un auditoire d’étudiants qui ne sont pas linguistes. Mais à chaque pas, je me trouve arrêté par des scrupules.» [1]

Dentro dos temas que expôs destacam-se algumas dicotomias, a língua e a fala, a diacronia e a sincronia, o significante e o significado, e o paradigma e o sintagma. Para Saussure a unidade mínima de qualquer sistema linguístico é o fonema ou sinal que é composto por um significante e um significado. O sinal só ganha significado ao fazer parte de um sistema estrutural de sinais, a linguagem. Ou seja, quando nos falam numa língua que não compreendemos, o sinal acaba por não existir. Por isso o sinal é algo em que alguém num determinado momento atribuiu significado. E para se compreender melhor as suas ideias é essencial perceber os conceitos de significante e significado, que são interdependentes. O significante é a maneira como o signo é percetível aos nossos sentidos e o significado é uma tradução mental do signo, o seu conceito. Por exemplo a palavra “árvore”, exemplo dado na publicação “Cours de Linguistique Générale”, o significante é a palavra escrita ou dita e o significado é a ideia de árvore.

Esquema explicativo do significante e significado,
retirado de "Ferdinand de Saussure - Cours de Linguistique Générale". 

Para Saussure «[…] le signe linguistique est arbitraire.» [2]. Usando o mesmo exemplo da palavra portuguesa “árvore”, que em francês é “arbre”, em inglês “tree”, em italino “albero” e assim consecutivamente, demonstra então que a humanidade ao exprimir-se em línguas diferentes, utiliza o mesmo significado para significantes diferentes, daí ser uma relação arbitrária. O ser humano faz ligações entre significantes e significados de uma maneira que varia consoante as várias culturas.

Sussure define a Linguística como sendo ou sincrónica ou diacrónica. A primeira é o que é falado no instante, são relações lógicas e psicológicas que se estabelecem entre sinais onde estes se unem formando um sistema; a segunda é mais como um estudo da evolução da linguagem, são relações que unem sinais sucessivos e que se substituem uns aos outros sem formar um sistema.

Esquema explicativo da língua e fala; sincronia e diacronia,
retirado de "Ferdinand de Saussure - Cours de Linguistique Générale".

Dois outros conceitos importantes que Saussure exemplifica são o paradigma, onde há um conjunto de sinais que aparecem num mesmo contexto, mas que se opõem, é como um campo de hipóteses possíveis, é como que uma “reserva virtual da língua”, e o sintagma, em que o valor do sinal se altera em função de outro sinal com o qual é combinado; um é mais dinâmico o outro é mais estático, respetivamente.

A língua foi estabelecida como forma de conseguirmos comunicar e de nos relacionarmos com o outro. É através da fala que a língua vai evoluindo, por isso o seu estudo é necessário. Sempre houve uma vontade de criar uma língua universal, daí o inglês ser importante. Mas mesmo assim não existe uma língua que una todos os seres humanos e na minha opinião acho que este campo deveria ser um importante investimento a realizar pela espécie humana.

Através dos ensinamentos e estudos de Saussure, apercebemo-nos o quanto evoluiu a Linguística, desde o séc. XX até hoje. «[…] le temps altère toutes choses; il n’y a pas de raison pour que la langue échappe à cette loi universelle.» [3]. Daí, o que Saussure desenvolveu, ser importante para hoje, séc. XXI, século da comunicação. E visto que a língua tem vindo a sofrer muitas alterações, é essencial que exista um método, que existam regras. 

A língua é assim algo que define as nossas raízes, que ainda hoje é passada de geração em geração e que nos torna parte integrante de uma sociedade. Como escrito anteriormente, é com ela que interagimos uns com os outros. E poder-se-á fazer a pergunta: então e os mudos, por não conseguirem falar não integram a sociedade? A resposta é sim, claro que fazem parte dela. Não é por alguém não ter a capacidade de falar que não compreende os outros, aliás porque a linguagem gestual é neste caso utilizada e está associada a uma língua, cada gesto corresponde a uma letra ou palavra. Tanto a língua como a linguagem estão inerentes à nossa capacidade de comunicação. 

Por isso alguns conceitos do “Cours de Linguistique Générale” deveriam continuar a ser referido nos dias de hoje, talvez como uma base de aprendizagem, acrescentando o essencial às mudanças que vão ocorrendo ao longo dos tempos, na nossa língua.





[1] MEJÍA, Claudia; SANDOZ, C.. Cahiers Ferdinand de Saussure, vol. 58. [edition des notes d'Emile Constantin du Troisième Cours de Linguistique Générale]. 1910-1911. Société Genèvoise de Linguistique. Cercle. 2005. 312 pp.
[2] , [3] BAILLY, Charles; SÉCHEHAYE, Albert; RIEDLINGER, Albert. Ferdinand de Saussure - Cours de Linguistique Générale. 1907-1910. Éditions Payot & Rivages. 1916. 510 pp.

O Progresso

Hoje em dia tudo é facilitado. Se quisermos ir a um restaurante típico da região, numa cidade que desconhecemos, o que é que fazemos? Basta pesquisar no telemóvel. Já não há necessidade de perguntar ou até mesmo de procurar no mapa. Se quisermos conhecer pessoas, vamos às redes sociais e iniciamos conversas, ou pedimos amizade, por outro lado, também podemos socorrer-nos do Tinder. Assim, damo-nos a conhecer, seja através das nossas escolhas, de um simples movimento com o dedo, ou através dos nossos interesses, já previamente preenchidos nos nossos perfis pessoais, ou comentários que fazemos.

Atualmente vive-se num mundo rápido, em que tudo é acessível. Privilegia-se aquilo que é imediato e que não apresenta grande resistência.

Assim, esta nova maneira de estar da sociedade influencia a sua relação com o meio envolvente. As tecnologias e os bens de consumo refletem as suas diferenças de pensamento e a sua nova maneira de interpretar e viver o mundo.

No texto “O Novo Citroën”, de Roland Barthes, o autor reflete acerca do novo modelo apresentado pela marca e de como este é visto pela população. Barthes afirma que o novo Citroën se trata de um carro que “cai manifestamente do céu”, uma vez que apresenta um acabamento próximo do maravilhoso, que chega a alcançar o sobrenatural. Este destaca-se pela sua superfície polida e lisa, considerada como representação da perfeição, daí a sua comparação a uma deusa através do nome, D.S., “sabe-se que o liso é sempre um atributo da perfeição, porque o seu contrário trai uma operação técnica e muito humana de ajustamento: a túnica de Cristo era sem costuras, como as aeronaves da ficção científica são de metal sem articulação”. O novo Citroën é então reconhecido pela sua elegância, pelo tratamento cuidado da velocidade, resultante numa peça delicadamente criada que vai de encontro às necessidades da sociedade sua contemporânea.  

Esta nova visão de beleza, de elegância e de classe são ainda hoje muito características. Atualmente opta-se pelo minimalismo, pelo geométrico e por decorações ou objetos complexamente simples. Tal como o novo Citroën, nos dias de hoje predominam os designs polidos e simples, livres de informação extra e desnecessária. Muitas multinacionais, por exemplo, a Apple que, ao longo do tempo, tem vindo a atualizar, nos sistemas operativos, os ícones das suas aplicações. A aplicação Finder, que se encontra responsável pelo gerenciamento de arquivos, é um desses exemplos. Esta aplicação começou por apresentar um ícone baseado numa figura quadrangular, onde se encontrava representado um “smile” dividido ao meio por uma linha que ultrapassava os limites do quadrado, porém, atualmente, o seu ícone encontra-se mais simplificado, uma vez que essa linha foi retirada, ficando o “smile” inserido num quadrado azul e branco perfeito, com uma aparência “clean”. O mesmo acontece com a decoração. Hoje em dia, observa-se nas casas modernas pouco mobiliário, funcional e de linhas direitas, enquanto que as casas das nossas avós, tinham decorações mais complexas e móveis trabalhados.

O belo é agora associado ao liso e ao simples, a superfícies que não oferecem qualquer tipo de resistência. Byung-Chul Han afirmava: “O polido, limpo, liso e impecável é o sinal da identidade da época atual. É aquilo em que coincidem as esculturas de Jeff Koons, os Iphones e a depilação brasileira. Porque é que o polido hoje nos atrai? Além do seu efeito estético, reflete um imperativo social geral: incarna a atual sociedade positiva. O que é polido e impecável não dói. Também não oferece qualquer resistência. Solicita-nos um Gosto. O Objeto polido anula qualquer coisa que possa confrontá-lo. Toda a negatividade é assim eliminada.” O autor reflete acerca do papel do liso no belo da atualidade e o que este representa. Byung-Chul Han defende também que o polido transmite uma sensação agradável e positividade, porém estas esgotam-se rapidamente, tratando-se de uma satisfação instantânea sem grande profundidade.

Este novo belo, baseado na facilidade e no rápido contentamento é então o reflexo da sociedade atual, uma sociedade impaciente e pouco proativa. O polido e o liso representam a fácil acessibilidade e a zona de conforto da sociedade, que opta pela primeira solução e pela resignação. Como também defendido por Byung-Chul Han, o polido não se limita ao exterior dos objetos, este existe também nas relações humanas. Hoje em dia vivemos na sociedade dos “likes” e do politicamente correto, as relações humanas assentam cada vez mais sobre estes alicerces efémeros e digitais que apenas fornecem felicidade momentânea, não passando de uma ilusão. Opta-se por este tipo de conversa, uma conversa em que a resposta pode ou não chegar na hora, dependendo se a outra pessoa estiver online. Deixa de haver o compromisso e a necessidade de presença cara a cara.

Assim, hoje em dia privilegia-se o liso e o polido, a facilidade e o conforto, a rapidez e o pragmatismo. Opta-se por soluções rápidas e que não oferecem resistência ou adversidades.

Referências:
BARTHES, Roland (1957/1988). O Novo Citroën in Mitologias, Lisboa: Ed. 70. 
HAN, Byung-Chul (2016). A Salvação do Belo, Lisboa, Relógio D’Água

“As Intermitências da Morte” - Recenção



“A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.”
— Saramago, J. (2005). As Intermitências da Morte. 5º ed. Porto Editora, p.113.

Agora, num contexto mais atualizado do que o esperado, na obra “
As Intermitências da Morte”, José Saramago, vencedor do Prémio Nobel da Literatura (1998), põe à prova o contexto da morte ou a falta dela. Publicada em 2005 pela Editora, Editorial Caminho, o Romance, propõe estudar o papel da existência humana, contemporânea, condenada à morte.
Saramago impõe a um lugar, igual a tantos outros, a ausência da Morte. Seria de esperar, que viesse a trazer algum tipo de positivismo seguindo a lógica natural e humana da nossa cultura, uma vez que esta possuí significantes de perda, infelicidade e “falta de”, um certo saudosismo, no entanto, o autor propõe inverter essa mesma conformidade.
O autor habitua o leitor ao desenvolvimento de textos críticos, de forma a propiciar-nos um melhor entendimento da função da Morte, ou a ausência desta, ao longo de toda a obra.
Divide o texto em pontos sociais e textuais, sempre relacionados com o tema, da seguinte forma:
1- Economia;
2- Religião;
3- Política;
4- Desfecho da ausência da morte;
5- Retorno da Morte;
5- Aprofundamento da compreensão das personagens;
Estes pontos foram desenvolvidos pelo escritor, relatando as mais diversas ocorrências: Desde o desemprego crescente do “coveiro” e falência das Agências Funerárias, ao desaparecimento da crença religiosa. Uma vez sem o papel da Morte, os crentes, deixariam de ter algo a temer. Sem morte, não haveria lugar para o Paraíso ou até mesmo o Inferno. Entender-se-iam como sendo o próprio Deus, invencíveis, desafiadores da morte. O sujeito ganha o poder, após dar-se o fim ao “fim”, da terminação linear da “nossa” existência. Este sobrepõe-se à natureza, às ideias, à consequência, ao de vir, que não estaria mais “por vir”.
No decorrer da história, desenvolvem-se novas questões, a necessidade de por fim ao sofrimento de familiares, que estariam presos neste limiar Vida/Morte, a quando, esta última, havia desaparecido. Como tal, o impensável ocorre, os cidadãos procuram chegar à fronteira de forma a contrariar a imortalidade imposta ao seu País, o que geraria o aproveitamento por parte de máfias, devido à ilegalidade da ação, assim como de certas empresas. Crítica constante ao capitalismo por parte do autor.
Saramago também desafia o papel da morte na obra, não só como escritor, mas também enquanto português, testando o contexto que a morte veio a desenvolver pela história em Portugal. Esta, é carregada de negativismo, um fado pesado e difícil de lidar, no entanto, na obra, assume e expõe ao leitor a sua necessidade e função, a sua dominância enquanto “regulador” da vida.
Outra forma de testar o seu contexto foi a atribuição de um papel feminino à Morte, personificando-a e atribuindo-lhe um dialogo direto, dominador, mas delicado. Esta luta de forças contrárias veio a completar a personalidade contrastante da figura, que nos veio a acompanhar de forma metafórica ao longo e toda a história. 



Antonio de Pereda (1611-1678), The Knight's Dream, ca.1650, óleo sobre tela,
152x217cm (Real Academia de Belas Artes de São Fernando, Madrid, Espanha)
(detalhe)

Por fim, após o retorno à normalidade do ciclo humano, a obra foca-se num possível romance entre a Morte e um comum cidadão, músico, que nega o seu destino, ao receber uma carta Bordeaux que viria a informá-lo, agora, da sua morte, de hoje a 7 dias. Este vem a devolver a carta ao seu remetente, sem entender o propósito. Intrigada com a ação deste sujeito, a Morte, na sua forma feminina, física, vai ao seu encontro.

Posteriormente cresce de forma simultânea, quer para o leitor, quer dentro do contexto narrativo, nas suas características psicológicas, que clarificam quem é o Músico e esta Mulher, no mesmo espaço. Esta cena propõe transfigurar o conceito “Morte”, para uma forma física, que posteriormente se desconstrói, a pessoa, comum.
Recorrente nas suas obras vem-se a verificar novamente a necessidade de Saramago inserir as Artes nas suas obras, como uma ligação figurativa, neste caso, entre a Morte e o músico, cidadão mortal. Assim como a figura feminina, associada sempre a papeis de dominância, em contextos temporais/históricos/de personagem, menos previsíveis. Outro ponto recorrente nas obras do autor, seria a presença da crítica à sociedade, controladora da Natureza, das ideias, que tende a guiar sempre a proveito próprio, neste caso, por parte do autor, termina numa crítica ao capitalismo.
A obra partilha a reflexão desafogada relativamente à vida/ morte, o amor e o sentido da existência do sujeito. Resta-nos entender na leitura do mesmo, esta dicotomia, associada a uma ideologia que retivemos e tendemos em certa medida a compreender e a contrariar.
A morte existe e assim como é dado no inicio na obra e no seguimento do nosso ciclo, à que a contrariar:

"No dia seguinte ninguém morreu".
— Saramago, J. (2005). As Intermitências da Morte. 5º ed. Porto Editora, p.1.