sábado, 30 de dezembro de 2017

“As Intermitências da Morte” - Recenção



“A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.”
— Saramago, J. (2005). As Intermitências da Morte. 5º ed. Porto Editora, p.113.

Agora, num contexto mais atualizado do que o esperado, na obra “
As Intermitências da Morte”, José Saramago, vencedor do Prémio Nobel da Literatura (1998), põe à prova o contexto da morte ou a falta dela. Publicada em 2005 pela Editora, Editorial Caminho, o Romance, propõe estudar o papel da existência humana, contemporânea, condenada à morte.
Saramago impõe a um lugar, igual a tantos outros, a ausência da Morte. Seria de esperar, que viesse a trazer algum tipo de positivismo seguindo a lógica natural e humana da nossa cultura, uma vez que esta possuí significantes de perda, infelicidade e “falta de”, um certo saudosismo, no entanto, o autor propõe inverter essa mesma conformidade.
O autor habitua o leitor ao desenvolvimento de textos críticos, de forma a propiciar-nos um melhor entendimento da função da Morte, ou a ausência desta, ao longo de toda a obra.
Divide o texto em pontos sociais e textuais, sempre relacionados com o tema, da seguinte forma:
1- Economia;
2- Religião;
3- Política;
4- Desfecho da ausência da morte;
5- Retorno da Morte;
5- Aprofundamento da compreensão das personagens;
Estes pontos foram desenvolvidos pelo escritor, relatando as mais diversas ocorrências: Desde o desemprego crescente do “coveiro” e falência das Agências Funerárias, ao desaparecimento da crença religiosa. Uma vez sem o papel da Morte, os crentes, deixariam de ter algo a temer. Sem morte, não haveria lugar para o Paraíso ou até mesmo o Inferno. Entender-se-iam como sendo o próprio Deus, invencíveis, desafiadores da morte. O sujeito ganha o poder, após dar-se o fim ao “fim”, da terminação linear da “nossa” existência. Este sobrepõe-se à natureza, às ideias, à consequência, ao de vir, que não estaria mais “por vir”.
No decorrer da história, desenvolvem-se novas questões, a necessidade de por fim ao sofrimento de familiares, que estariam presos neste limiar Vida/Morte, a quando, esta última, havia desaparecido. Como tal, o impensável ocorre, os cidadãos procuram chegar à fronteira de forma a contrariar a imortalidade imposta ao seu País, o que geraria o aproveitamento por parte de máfias, devido à ilegalidade da ação, assim como de certas empresas. Crítica constante ao capitalismo por parte do autor.
Saramago também desafia o papel da morte na obra, não só como escritor, mas também enquanto português, testando o contexto que a morte veio a desenvolver pela história em Portugal. Esta, é carregada de negativismo, um fado pesado e difícil de lidar, no entanto, na obra, assume e expõe ao leitor a sua necessidade e função, a sua dominância enquanto “regulador” da vida.
Outra forma de testar o seu contexto foi a atribuição de um papel feminino à Morte, personificando-a e atribuindo-lhe um dialogo direto, dominador, mas delicado. Esta luta de forças contrárias veio a completar a personalidade contrastante da figura, que nos veio a acompanhar de forma metafórica ao longo e toda a história. 



Antonio de Pereda (1611-1678), The Knight's Dream, ca.1650, óleo sobre tela,
152x217cm (Real Academia de Belas Artes de São Fernando, Madrid, Espanha)
(detalhe)

Por fim, após o retorno à normalidade do ciclo humano, a obra foca-se num possível romance entre a Morte e um comum cidadão, músico, que nega o seu destino, ao receber uma carta Bordeaux que viria a informá-lo, agora, da sua morte, de hoje a 7 dias. Este vem a devolver a carta ao seu remetente, sem entender o propósito. Intrigada com a ação deste sujeito, a Morte, na sua forma feminina, física, vai ao seu encontro.

Posteriormente cresce de forma simultânea, quer para o leitor, quer dentro do contexto narrativo, nas suas características psicológicas, que clarificam quem é o Músico e esta Mulher, no mesmo espaço. Esta cena propõe transfigurar o conceito “Morte”, para uma forma física, que posteriormente se desconstrói, a pessoa, comum.
Recorrente nas suas obras vem-se a verificar novamente a necessidade de Saramago inserir as Artes nas suas obras, como uma ligação figurativa, neste caso, entre a Morte e o músico, cidadão mortal. Assim como a figura feminina, associada sempre a papeis de dominância, em contextos temporais/históricos/de personagem, menos previsíveis. Outro ponto recorrente nas obras do autor, seria a presença da crítica à sociedade, controladora da Natureza, das ideias, que tende a guiar sempre a proveito próprio, neste caso, por parte do autor, termina numa crítica ao capitalismo.
A obra partilha a reflexão desafogada relativamente à vida/ morte, o amor e o sentido da existência do sujeito. Resta-nos entender na leitura do mesmo, esta dicotomia, associada a uma ideologia que retivemos e tendemos em certa medida a compreender e a contrariar.
A morte existe e assim como é dado no inicio na obra e no seguimento do nosso ciclo, à que a contrariar:

"No dia seguinte ninguém morreu".
— Saramago, J. (2005). As Intermitências da Morte. 5º ed. Porto Editora, p.1.




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