sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Alienação e o mercado da arte

O conceito de alienação proposto por Karl Marx afirma que o trabalhador se esgota e torna-se mais pobre na sua vida interior quanto mais seu trabalho aumenta em poder no mundo das coisas. “O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objecto, que se transformou em coisa física”[1], ocorrendo então uma objetivação do trabalho.

Uma matéria recentemente publicada pela Garage a respeito do artista americano Keith Haring e sua Pop Shop em Nova Iorque nos anos 80 leva o leitor à recorrente questão da exploração do artista por parte do mercado da arte (curadores, colecionadores, etc.). Seu experimento de retail-as-art foi à frente da sua época. Sua motivação foi simples: exausto do mercado da arte, “the gallery-industrial complex”[2], e da objetivação do seu trabalho, Haring decidiu objetivá-lo por conta própria ao vender sua arte em formas de broches, posters, adesivos e camisetas.

A frustração do artista proveniente da objetivação do seu trabalho é uma marca no mundo da arte contemporânea e do capitalismo e nisto pode ser traçada uma tangente com a teoria de alienação de Marx, dada a exploração e comoditização do artista e objetivação do seu trabalho.  

A teoria de Marx considera quatro aspectos da alienação do trabalho, da atividade prática humana: a alienação da coisa, a auto-alienação, a alienação genérica do homem e por fim, a alienação do homem—a comparação deixa evidente que as quatro dimensões da alienação desenvolvidas por Marx sobrepõe-se e interligam-se. Apesar de referindo-se à produção em massa exercida pelo proletariado e sua implicação para o homem inorgânico e o mundo a sua volta, este conceito parece tornar-se aplicável, até certo ponto (mesmo que superficialmente), no mundo da arte: na relação do artista com as suas obras e o domínio que essas passam a ter sobre seu autor devido ao mercado da arte, suas exigências e sua comoditização. 

O primeiro aspecto trata da relação do trabalhador com o produto do trabalho que se torna um objeto estranho, através da objetivação, que acaba por dominar-lo. A objetivação de acordo com Marx é a servidão do objeto—“o trabalhador põe a sua vida no objecto, que agora pertence ao objeto”[1], uma situação que implica a perda por parte do trabalhador do que foi incorporado no seu trabalho e agora já não lhe pertence. A relação de quanto maior o produto mais diminuído o trabalhador é uma causa e efeito do domínio que o objeto passa a ter sobre o seu autor. No mundo da arte, quanto maior seu prestígio como artista dada a crescente valorização do seu trabalho, maior o estranhamento das obras para seu autor devido ao domínio que estas passam a exercer sobre seu trabalho—um domínio que enraiza-se no mundo das coisas, dirigido pelos grandes atores do mercado da arte, como galeristas, curadores e colecionadores.


"Alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objecto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autónomo em oposição com ele; que a vida que deu ao objecto se torna uma força hostil e antagónica.” 

Karl Marx, O Trabalho Alienado [1]

A auto-alienação trata da relação do trabalho com o ato da produção, a separação entre esse e o trabalhador, que por sua vez se torna um sofrimento devido à passividade do trabalhador. A partir deste ponto, a vida do trabalhador se torna uma atividade dirigida contra ele e independente dele. Este é um processo natural e humano. A partir do momento que o artista passa a ser controlado pelo seu trabalho e se separa dele, há uma quebra do próprio ser que então se torna passível de objetivação e exploração por parte de agentes exteriores. Donald Judd, o artista icónicamente  associado ao minimalismo, via senadores, presidentes e grupos de interesses especiais da mesma forma que via curadores, agentes e colecionadores: “All were a shadow of each other and to be avoided” [3]. A constante exigência capitalista do mercado da arte que recai sobre o trabalho do artista priva cada vez mais o crescimento de sua vida interior, sua objectividade real como ser genérico, corpo inorgânico.

Keith Haring e sua Pop Shop marcam então a história da arte contemporânea como uma reação ao processo de objetivação e alienação do trabalho. Esta reação pode tanto ser interpretada como uma sátira à objetivação e à excessiva valorização do mundo das coisas por parte do artista, quanto simplesmente uma forma do artista atingir sua visão da arte como um produto social que deveria ser acessível à sociedade, e não a um grupo seleto. Nesse momento, o artista quebra o processo de alienação mantendo-se  independente na sua criatividade, sem corromper-se.

Referências

[1] Marx, Karl (1993). “O Trabalho Alienado” em Manuscritos Económico Filosóficos. Lisboa: Ed. 70 
[3] McGraw, Patrick (2017). Revista “032c” - 33rd Issue, página 275. Berlin


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