A capa escolhida para edição de janeiro de 2015 da revista ELLE encena, em linhas muito claras, uma figura maternal de aparência cuidada e profissional, que amamenta um recém nascido. A edição em questão incide sobre um dos grandes temas da actualidade: o tabu que persiste relativamente à amamentação em público. Esta edição inscreve-se assim numa campanha que pretende consciencializar e normalizar este acto tão natural e biológico, que é ainda visto com grande preconceito. Esta consciência tem-se vindo a fazer sentir em diversas áreas, nomeadamente alguns artistas e fotógrafos têm vindo a mostrar preocupação e solidariedade para com este tema.
Este preconceito parece ter várias origens, sendo uma delas a permanente sexualização do corpo feminino, particularmente dos seus seios. Esta ideia deriva claramente de uma construção cultural ou por outra palavras, de uma ideologia, que não é nada mais do que uma percepção transformada pelo ambiente cultural em que nos inserimos. Para Karl Marx a ideologia mascara a realidade, mostrando apenas sua aparência e escondendo suas demais qualidades.
Se pensarmos, que no sexo oposto, a exposição dessa zona erógena (essencialmente os mamilos) está absolutamente aceite e normalizada e que no entanto, para uma mulher chega a ser ilegal essa exposição, até mesmo quando ela serve apenas necessidades biológicas e maternais como as da amamentação, isto revela o abismo que existe entre a forma como os géneros são encarados na nossa sociedade.
Isto acontece devido à constante sexualização e objectificação do corpo feminino na sociedade. Contudo, essa mesma sexualização é paradigmática: a mesma sexualidade que é usada, aceite e até desejada como objecto de marketing e propaganda nos mais diversos meios, como por exemplo na indústria da música, não é socialmente aceite para servir fins tão básicos e universais como os da amamentação. Esta dicotomia parece ser reveladora das desigualdades existentes entre o sexo feminino e masculino. A sexualidade da mulher parece ainda ser vista como uma ameaça, como algo a ser contido, excepto quando essa função lhe é previamente atribuída. A ideia de "sex sells" é subliminar a diversas campanhas de venda e é assumidamente uma estratégia de marketing, ela está presente nos mais diversos anúncios televisivos de perfumes, carros, gelados, e é essencialmente protagonizada pelo sexo feminino. A publicidade é apenas um subterfúgio, um processo dinâmico através do qual a sociedade procura introduzir uma realidade, o que nos faz invocar o conceito de incorporação. No entanto, e contrário ao que é habitual, nesta campanha ela rema contra a maré e procura incorporar uma questão delicada e ainda pouco falada.
A ideia presente na capa aborda uma perspectiva feminista cujo objectivo é construir condições de igualdade entre os dois géneros e não, como muitas vezes ela é interpretada, de supremacia feminina. O feminismo defende o acesso a direitos iguais para homens e mulheres, direitos universais que não remetam ou restrinjam nenhum dos géneros a concepções culturais que têm vindo a ser perpetuadas: por exemplo, a ideia que a mulher está destinada a ser mãe e dona de casa, enquanto que o homem é aquele que trabalha e sustenta essa vida doméstica. Este entendimento do papel da mulher permite-nos evocar o conceito de hegemonia introduzido pelo marxista António Gramsci: a hegemonia é um pensamento dominante que conforma a realidade, uma convenção tão unanimemente partilhada culturalmente que não é nunca questionada e cuja massiva adesão pode conduzir a uma cegueira ou a uma falsa consciência da realidade. Simone de Beauvoir, uma escritora com forte influência na teoria feminista diz-nos, numa das suas obras mais contundentes, "O segundo sexo", o seguinte: "a experiência vivida, a condição feminina e masculina que parecem estar numa ordem das coisas, não trata o corpo como o corpo em si, mas submetido a interferências, tabus, valores, costumes, o que significa que o corpo é um fruto social e não natural."
A mudança no entendimento da mulher inicia-se no pós-segunda guerra mundial com a crescente industrialização e urbanização, a inserção da mulher no mercado de trabalho e a criação de um medicamento contraceptivo que permitia o controlo da fecundidade. No entanto, existiam ainda forças conservadoras que defendiam o determinismo biológico que reservava às mulheres um destino social de mães, confinando-as inevitavelmente à maternidade. Por oposição à concepção que circunscreve a mulher ao papel de mãe, a capa da revista surge como uma resistência a essa concepção hegemónica: nela observamos uma mulher perfeitamente capaz de conciliar estes dois lados, de mãe e profissional, sem ter de abdicar de nenhum deles. Este dois lados são representados pela presença do bebé e pela aparência profissional e informação adicional da profissão da figura feminina. A figura assume ainda uma posição frontal, no sentido em que não tenta esconder o peito, assume o momento de amamentação com naturalidade, a naturalidade de um direito.
Sobre o mesmo tema, o sociólogo francês Pierre Bourdieu , diz-nos que o que justificaria naturalmente a diferença social e a divisão do trabalho entre os géneros seria a visão social em que a própria diferenciação anatómica entre os sexos segrega os indivíduos, isto é, a própria condição física da mulher, que naturalmente faz a gestação do bebé e o alimenta antes e após a gravidez, fez com que ela fosse relegada o plano da maternidade. Esta ideia de "destino biológico inevitável" levou à dominação e sobrevalorização do sexo masculino, o sexo forte. Foi esta ideia que permitiu chegar à conclusão de que as diferenças de género não eram perpetuadas por condições físicas ou biológicas, mas sim por construções sociais. A nossa actualidade (ainda que não plenamente) e própria capa da revista ELLE vêm mostrar como a mulher é um ser igualmente plural e capaz. Esta perspectiva de género, fortemente influenciada por Beauvoir e a sua célebre frase que a figura feminina "não nasce mulher, mas torna-se mulher", permitiu observar a maternidade segundo várias facetas, ela tanto pode ser um símbolo de poder e realização feminina, como um símbolo de opressão, quando utilizado para diminuir o seu valor e capacidades enquanto ser humano. A faceta dependerá sempre da perspectiva ou ideologia a partir do qual a realidade é percepcionada.
Referências bibliográficas:
FISKE, John (1993), Introdução ao Estudo da Comunicação, Porto, Edições Asa.
Scavone, Lucila, A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais, cadernos pagu 16 (2001): 137-‐150
http://sociology.about.com/od/Current-Events-in-Sociological-Context/fl/Why-Breastfeeding-in-Public-is-Taboo.htm
https://ensaiosdegenero.wordpress.com/tag/clarice-lispector/
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