sábado, 23 de dezembro de 2017

Curar e Reparar















Coimbra recebe, pela segunda vez, o Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra. Esta iniciativa parte da classificação da Universidade de Coimbra, Alta e Sofia como Património Mundial pela UNESCO.


O objetivo marcado desde a primeira edição (realizada em 2015, ano em que a Universidade celebrou 725 anos) é refletir sobre as possibilidades – oportunidades e desafios – por este tipo de reconhecimento. Os usos e fruições do património mas também o perigo da cristalização e musealização dos bens são algumas das matérias que estimulam o pensamento.

A iniciativa pretende também promover e valorizar Coimbra, os seus monumentos e museus, assim como a vida da cidade que parece muitas vezes estar apagada. As várias instalações e apresentações artísticas, de uma enorme qualidade, foram planeadas e estruturadas em locais icónicos – sem se cingir ao património classificado mas alargando o espectro - com o objetivo de promover a oportunidade de visitar ou revisitar estes espaços assim renovados, nos quais a arte agora estabelece uma íntima relação. Com o mote “Curar e Reparar”, o projeto “Anozero” pretende que o público se relacione com este paradoxo que existe entre a necessidade de “cuidar” do património que nos pertence e a quase obrigação de se perceber que para se compreender, é necessário “re-parar”.

O Mosteiro de Santa-Clara-a-Nova– construído no século XVII, ocupado por militares como quartel entre 1911 e 2006, e devoluto desde então – foi reinventado  através de mais de vinte peças e instalações de artistas nacionais e internacionais. É um mosteiro imponente,onde cada parede transmite história e o passar de um tempo importante. Com a introdução da arte contemporânea, estas sensações são ampliadas e a junção do antigo com o novo permite compreender a exposição com o olhar tanto histórico como diligente.

A instalação “Study for Cura” do artista Julião Sarmento foi aquela que mais me chamou a atenção, tanto pela forma como pelo conceito abordado. Julião Sarmento é um artista que tem desenvolvido uma obra em torno da memória, da evocação e da metáfora do desejo. Embora mais conhecido pelo seu trabalho na área da fotografia, filme, escultura e pintura, tem desenvolvido obras performativas e a “Study for Cura” é um exemplo desta exploração de meios artísticos. O observador parte da ponta de um grande corredor que, numa fase inicial, se encontra completamente apagado. Apenas é possível reparar numa pequena luz que se encontra no fim deste mesmo corredor, mas que pouca diferença faz na escuridão. O observador tem apenas um objetivo: o de andar para a frente, sem hesitar ou parar. Esta obra é uma instalação ativada pelos passos do espectador: começa num local sem luz e à medida que anda vão-se acendendo luzes que no final do percurso ficam muito agressivas, tornando impossível a visão. Esta viagem parte do conceito de cegueira, quando o observador é confrontado com a nulidade da luz assim como com o excesso e exagero da mesma. Esta cegueira surge como uma expressão da memória e do recordar, que se encontra tão inerente ao conceito base de toda a exposição. O caminho reflete, de certa forma, o trabalho da memória: o surgir e o desaparecer, o apagar e o acender, até a vida e a morte. Numa viagem que se faz sozinho ou acompanhado, esta instalação de Julião Sarmento reflete uma tentativa de autodescoberta, de perda de um medo de arriscar e ir, sem olhar para trás. Um olharsobre um presente, que vai deixando para trás um passado e impede a presunção de tentar adivinhar o futuro.
Cura (2017) de Julião Sarmento por Vítor Garcia














Como uma pessoa que sempre viveu em Coimbra e conhece maior parte dos monumentos onde a “Anozero” acontece, penso ser importante evidenciar o reconhecimento que dou a esta manifestação artística no meio urbano. É uma forma de dar uma vida diferente à história e permitir que aqueles que habitam a cidade não se conformem com a falta de atividade na mesma. Porque não basta apenas ver, passar sem dar importância e tratar com desdenho ou indiferença. De facto, se o património nos pertence então que nos orgulhemos dele e queiramos Cuidar e Reparar a arte para que esta continue a fazer parte da memória.

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