Under The Skin (2013), Jonathan Glazer |
O feminino-monstruoso e a objetificação sexual
Todo o filme gira em redor da concepção punitiva do desejo, mas desta vez, em específico, do desejo masculino. Glazer trabalhou com Scarlett Johansson enquanto elemento metatextual visto que a atriz ganhou, por duas vezes, o título “Sexiest Woman Alive” da Esquire. Através da exposição absoluta de Johansson ao olhar do espectador, ele provoca esse desejo e de seguida ilustra as consequências do mesmo, numa clara condenação da objetificação que o olhar masculino produz. Funciona isto quase como que a catarse da tragédia grega que pretendia confrontar o espectador com um clímax trágico a fim de fomentar a iluminação da consciência. Ao longo de Under the Skin encontramos uma enlencagem de técnicas, cenas e escolhas visuais que reforçam esta ideia.O filme começa com uma sequência que pode ser interpretada como o nascimento de Laura. Ouvimos este ser a treinar dicção, a formar palavras, a tomar a forma feminina. Essa forma é consumada numa sequência desconcertante em que o alienígena despe uma outra mulher morta e veste as suas roupas. Essa mulher foi recolhida por um misterioso homem que conduz uma mota e que, de forma recorrente, aparece ao longo do filme para eliminar, juntamente com outros, o rasto que a personagem de Johansson deixa, numa divisão de trabalho análoga à de uma colónia de formigas, onde temos os caçadores e soldados, sendo que os segundos garantem a segurança dos primeiros que trazem comida para o ninho.
Nessa sequência, Laura observa o corpo nu sem vida da mesma forma científica, curiosa e fria com que observa uma formiga que encontra de seguida. Não existe empatia.
Durante o resto do primeiro arco da história, a personagem principal habita uma carrinha branca que conduz pelas ruas de Glasgow na Escócia. O estereótipo do homem da classe trabalhadora que conduz uma carrinha e manda piropos às mulheres que passam na estrada é empregue aqui, então, numa lógica reversa. O assumir do controle desta carrinha é o interromper da ordem patriarcal, é assumir o controle de uma narrativa de opressão que é espelhada para confrontar o público. As próprias conversas de ocasião que Laura emprega são uma paródia das que os homens heterossexuais levam a cabo quando tentam ganhar a atenção de uma mulher, com perguntas como "Achas-me bonita?" repetidas de cada vez que o ser extraterrestre encontra uma nova presa. A protagonista pede indicações, convida os homens a entrar e depois de fomentar o desejo sexual neles, convida-os a entrar numa casa da qual nunca regressam. Os homens seguem Johansson através de uma sala escura que se vai liquefazendo progressivamente até que se afogam num líquido misterioso. Aprendemos, mais tarde, que esse líquido parece promover uma duplicação da pele e é a chave para os disfarces utilizados pelos alienígenas. Após terem a sua pele duplicada, ganhando quase a aparência de um casulo, são eliminados.
Aqui parece pertinente introduzir o conceito do feminino-monstruoso teorizado por Barbara Creed no livro Feminist FIlm Theory: A Reader. Creed postula uma tendência cinematográfica para a representação de mulheres que subvertem os paradigmas patriarcais como fontes de horror, que promovem o terrível e o assustador. A autora dá exemplos mitológicos para ilustrar o quão antiga é esta concepção, começando pela figura da Medusa que reina sob o panteão dos monstros femininos, que torna em pedra qualquer homem que lhe coloque a vista em cima. Esta ideia de punição face ao desejo de regozijar na beleza feminina volta a estar presente em Under the Skin. Os corpos dos homens cristalizam após caírem no engano ledo e cego do monstro feminino, após uma dança hipnótica e silenciosa, apenas pautada pelo ritmo que a banda sonora impecavelmente alienígena de Mica Levi introduz. Este conceito de feminino-monstruoso, apesar de aplicável dentro da lógica de reversão de dogmas que se vê neste filme, tem raízes exatamente nesses dogmas patriarcais e na forma como a mulher é vista como uma ameaça, uma rival, um oposto. Derradeiramente, é a misoginia que produz concepções de medo e de abjecção face ao feminino dentro de uma sociedade falocêntrica pela própria sociedade falocêntrica. Glazer não se esquece do papel opressor dessa sociedade e é assim que escolhe concluir o filme após um segundo arco que muda o ambiente da história.
Under The Skin (2013), Jonathan Glazer |
A destruição do poder feminino
A meio do filme surge uma mudança tonal que coincide com a anagnórise de Laura, o reconhecimento, que vem sob a forma de um encontro com um homem desfigurado. Desprovido de agressão sexual, o homem confronta o alienígena com ternura, pelo que Laura se vê obrigada a lidar com a realidade que os seres humanos com quem tem lidado são organismos inteligentes e com sentimentos. Após olhar pela primeira vez ao espelho e ver a sua forma humana, um rebate de consciência leva-a a libertar o homem. Surge pena face ao testemunho comprovado da existência de humanidade. Quase como um Síndrome de Estocolmo reverso, ela debate-se sobre como seria realizar a promessa que nunca cumpre quando seduz aqueles homens. Será que são mais do que só alimento? O que é que vive debaixo da pele?É aí que Laura começa a tomar uma forma mais submissa de identidade feminina. Face a essa anagnórise, retira-se para o campo, tenta fazer coisas humanas como comer um bolo, acabando por ser confrontada com a sua real natureza alienígena. É aí que conhece um outro homem, que a protege, a leva para casa e toma conta dela. Despe o seu casaco de pele para passar a usar o casaco do homem que a acolhe, numa consumação da submissão a que se está a sujeitar. Começa a ver o seu corpo de uma maneira diferente, observando a sua sexualidade de modo frágil. Quando começa a ter relações sexuais com o homem que a acolheu, apercebe-se de que tem uma vagina, uma que é penetrável, e confronta-se com a vulnerabilidade que antes só via nas suas presas. Quando se olha ao espelho, os reflexos que a olham de volta são as identidades femininas que se viu obrigada a criar mas que nunca realmente habitou de forma confortável e com as quais se vê confrontada agora.
Laura, de repente, ganha noção do porquê de ser um objeto de olhar masculino, e parece que simultaneamente, o mesmo acontece a Scarlet Johansson. Em que ponto é que a atriz passa de o ser para se tornar num sex symbol? Será que alguma vez foi apenas a primeira aos olhos do espetador masculino?
Under The Skin termina com Laura a fugir para um bosque escocês à procura de retomar agência sobre o seu corpo de novo, e adormece numa cabana abandona, acordando depois com um lenhador que a está a molestar. A personagem foge mas num confronto final com o lenhador, que a tenta violar à força, o resultado é o rasgar de parte da pele que cobre a alienígena. O homem foge, deixando Laura sozinha a retirar o que resta da sua pele falsa para revelar uma figura negra esquelética, um nada humano. O lenhador recusou-se a deixar Laura em paz, recusou-se a reconhecer-lhe agência sobre o seu próprio corpo, sobre a sua própria humanidade e sexualidade. Ele volta com gasolina para lhe atear fogo, numa destruição de ambas essas características, a humanidade e a sexualidade. A figura feminina deve submeter-se ao patriarcado, ao olhar masculino, e quando nega isso e revela algo mais por debaixo da pele de mulher frágil e submissa, o homem vê-se obrigado a destrui-la numa metáfora para a castração.
Este último arco encerra então com Laura a morrer, vítima do paradigma patriarcal opressor que permeia os tecidos sociais. Assim que Laura decidiu tentar deixar de ser um predador e viver a sua sexualidade de forma humana e natural, encontrou um clímax destrutivo que nos lembra que a sociedade não perdoa a fragilidade feminina e que se continua a sobrepor a ela; que continua a mistificar a mulher criando figuras monstruosas. Glazer quis ilustrar esta realidade através de uma narrativa não demasiadamente complexa mas vaga o suficiente para abrir espaço para interpretações variadas acerca do comentário que o autor quis fazer. Para mim, é uma ilustração irrepreensível das problemáticas misóginas da sociedade ocidental através da lente da ficção-científica.
Resta fazer uma nota final sobre a banda sonora criada pela compositora Mica Levi, que me parece ilustrar melhor que qualquer imagem o ambiente geral desta longa metragem.
Lipstick to Void, Mica Levi
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