sábado, 23 de dezembro de 2017

Vendem-se raparigas livres







Lisboa. Dezembro de 2017. Manhã gelada. Três meninas de pernas ao léu, alinham-se lado a lado junto à Basílica da Estrela. Estão “congeladas” por uma fotografia num mupi de rua mas a escolha de um local público para esta campanha de Inverno da DIM é tudo menos inofensiva. É tal o choque visual (ou será térmico?) que não há como ignorá-la.
A depuração do ambiente da imagem obriga o espectador a focar-se no que interessa. Uma varanda de ferro forjado sugerindo a ideia de “boas vistas” e três rabos mais ou menos encuecados. É tudo. A mulher é “paisagem” e está available, como diria John Berger no seu  Ways of Seeing, de 1972.
É tudo, ou quase tudo. Porque o mais gritante é que as jovens são apresentadas de costas numa posição indefesa e passiva, quais presas à beira de um precipício que não podem transpor. Estão inertes e não têm cara. Não são ninguém. São os seus rabos. Tirando uma delas que se vira jovial para um observador que estará no mesmo quarto (opera a “incorporação” de que nos fala Fiske - é preciso salvar a pele da marca – ou do poder económico - e mostrar que a mulher está de acordo e até contente com o que lhe está a suceder), o cenário é um hino à submissão feminina.
Mas o golpe de génio ainda assim está por lançar. Pelo menos, no que à ideologia e sua perniciosa forma de reprodução diz respeito. Sobre a monocromia de uns blusões de ganga (símbolo americano de aventura, rebeldia e liberdade, mais uma vez para reforçar o sistema de “incorporação” e desactivar o “oposicionismo” feminino), destaca-se em letras amarelas o que as jovens têm a dizer. E as jovens proclamam em letras capitulares: I’M FREE. O que quer dizer, “Sou livre”. Ou quererá antes dizer “Estou livre” – isto é, diponível - como estará uma casa de banho ou um parque de automóveis?! E como convém à preservação da equação de supremacia do género masculino sobre o feminino.
Com uma pequena ambivalência linguística e de uma só machadada matam-se dois coelhos: o primeiro, claro, legitimar o anúncio, pretendendo que se defende a liberdade da mulher e portanto a igualdade de género, o que é constitucional e pretensamente defendido pela sociedade contemporânea; o segundo, no mesmo golpe de mágica, manter o satus quo e deixar tudo como está, fazendo o adversário (a hipotética “resistência” da mulher de que falava Gramsci), acreditar que vingaram os seus próprios interesses e convencer-se de que mostrar-se livre/disponível é matematicamente igual a ser livre.
Escreve John Fiske em 1993:

“A Ideologia é muito mais eficiente do que Marx julgava porque opera de dentro para fora e não de fora para dentro – está inscrita profundamente nas maneiras de pensar e de viver de todas as classes”.

Com um ligeiro retoque estilístico num modelo de roupa interior, doutrina-se anualmente mais uma fornada de raparigas. A geração em causa ficará a saber que é bem visto almejar a ser livre mas que ser livre quer dizer mostrar-se desinibida e sempre pronta para servir os desejos alheios. As jovens que queiram estar in e ser aceites pelos seus pares, tenderão a mimetizar a postura psico-social que à ideologia dominante convém. É a hegemonia em acção (Gramsci) e a manutenção do poder por meios não coercivos (Fiske, outra vez).

Tudo isto em Lisboa, 2017. Quando se completam 200 anos sobre o nascimento de Marx, ele que acreditou que o sistema capitalista seria vencido e que a mudança social era possível. Também Gramski postulou que a mudança social era possível, acreditando no poder das forças de resistência. Parece que só Althuser em 1971 desconfiava que a mudança seria improvável. Improvável mesmo é o que fica a parecer, volvido que foi mais meio século. Veja-se o exemplo abaixo.







No mesmo Inverno, exactamente, eis agora em capturas de ecrã, algumas imagens do video promocional da colecção de roupa interior masculina da mesma marca, a francesa DIM.

O homem é “captado” em posição frontal, de câmara fotográfica em punho e com um mais que fálico e superlativo zoom, digladiando-se com uma fera qual deus grego ou ser mitológico. Ele é invencível. A sua superioridade é inquestionável, mesmo contra as forças da Natureza. Ele é pujante. Ele é o predador. O texto da campanha propõe-lhe umas boxers “inteligentes”, interpelando-o e apelando mais uma vez ao esteriótipo de género que para além da supremacia física e simbólica, lhe assegura ainda a sua dominância mental.


Referências:
Fiske, John, Introdução ao Estudo da Comunicação, Edições Asa, 1993
Berger, John e BBC, Ways of seeing, acessível via Youtube

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