Li pela primeira vez estes versos, na ténue e até frágil sensibilidade dos meus 15 anos. Admito que na altura, pouco consegui extrair do poema que me fosse concreto; havia algumas “buzzwords” que mais me chamavam à atenção: “Sou Vermelho-Niagára dos sexos escancarados nos chicotes dos cossacos!”
Sabia lá eu o que eram sexos escancarados, cossacos, ou um Pan-Demonio-Trifauce, mas a maneira com que Negreiros escrevia cada verso apelava-me de uma maneira incontornável, a sua escrita falava-me tão intimamente que apenas lia, pois soava tão erradamente bem.
“A Cena do ódio”, bem como vários outros títulos de poemas de Almada Negreiros, apela à revolta e inadmissão de valores conservadores perante a revolução de 14 de Maio de 1915, paralelos à receção e crítica d’Orpheu enquanto publicação legítima e inovadora. A data é referida na mesma introdução do poema, assim como a menção de que se tratam de “excertos de um poema desbaratado escrito durante os 3 dias e 3 noites” que a mesma revolução durou.
“Tu arreganhas os dentes quando te falam d’Orpheu
e pões-te a rir, como os pretos, sem saber porquê.
E chamas-me doido a Mim
que sei e sinto o que Eu escrevi!
Tu que dizes que não percebes;
rir-te-hás de não perceberes?”
A pluralidade quase megalómana da expressão que se apodera da obra de Almada Negreiros nunca passa despercebida, a riqueza expressiva dos inúmeros vocativos, de pontuação, da indignação demarcada para com o presente com o qual se deparou, todas estas características da sua obra podem ser (re)visitados através deste poema. De uma maneira quase irónica, observo o quão universal e intemporal a raiva e angústia de Almada Negreiros é para com o mundo; para com “pindéricos jornalistas”, “robertos fardados”, “beleza canalha” e ““sanfona-saloia do fandango dos campinos”, para nomear alguns.
É expressamente revoltado porque não o deixam ser, ou porque lhe “ladram a vida” apenas por fazer o expectável e a viver. Há uma tremenda sobeja nele quando endereça todas as entidades que não ousam deixá-lo ser;
Curiosamente foi essa mesma “crítica” que esgotava todas as publicações de Orpheu, edição após edição, pois apesar de degenerados, loucos ou apenas iludidos, estes homens revelaram-se uma força definitiva na arte da palavra, e quanto a Negreiros, na Arte, ponto final.
Este poema foi descrito pelos seus contemporâneos enquanto sendo definidor da vanguarda da época, e um verdadeiro “grito de raiva atávica”. Apesar do mesmo, e da violência que o marca, poder ser de alguma forma legitimado pelas circunstâncias de cariz bélico, denota-se que a mesma agressividade com que Negreiros se dirige à dita “revolução”, da mesma maneira pode ser aplicada somente aos seus contemporâneos atacantes que insistiam nas suas acusações e reforças de que o artista era apenas louco.
Perante a leitura de qualquer um, ou a plenitude de todos estes versos, é-nos impossível não refletir no quão arrebatadora a mensagem presente é. Há um misto de emoções ligadas à paixão efervescente e raivosa de Almada enquanto afirma ser quase omnipotente no que faz e diz, no que é; uma multiplicidade de matéria e alma como se fosse uma força que ainda não foi legitimamente reconhecida pelos seus pares.
“Sou ruinas razas, innocentes como as azas de rapinas afogadas. Sou reliquias de martyres impotentes sequestradas em antros do Vicio e da Virtude. Sou clausura de Sancta professa, Mãe exilada do Mal, Hostia d'Angustia no Claustro, freira demente e donzella, virtude sosinha da cella em penitencia do sexo! Sou rasto espesinhado d'Invasores que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.”
A vigorosa e quase destemida atitude com que Almada declama cada verso entranha-se-me nos olhos, ouvidos e poros. Não há como não sentir a fúria permear cada centímetro do eu poético que se depara com tão inderrogável maneira de ser, de se revoltar, de se negar a conformismos e insistir em contrariar pelo seu próprio bem e futuro da Arte como a conhecemos. Que não iria ser uma qualquer calúnia ou ataque à sua sanidade mental que o iria parar, que ele é tão mais colosso do que qualquer praga que lhe possam rogar.
“Hei-de, entretanto, gastar a garganta a insultar-te, ó bêsta! Hei-de morder-te a ponta do rabo e pôr-te as mãos no chão, no seu logar! Ahi! Saltímbanco-bando de bandoleiros nefastos!”
“A Cena do Ódio” é, pessoalmente, um ponto de choque e viragem na perceção contemporânea de Negreiros sobre as reformas do pensamento e criação artística; da negação aos que negam a própria mudança, “Uma bofetada na cara do gosto público”, um chuto nas noções deveras ultrapassadas do que é legítimo na era literária que o rodeava, um pêro em quem o duvidava.
Negreiros não receia invocar nomes horripilantes cujas sílabas carregam tragédia, sede sanguinária ou um puro apetite por destruição, tal como Átila e Nero; temas como Pompeia, Sodoma, “corrente com suores do Brazil”, e “sete pragas sobre o Nilo”.
“Larga a cidade masturbadora, febril, rabo decepado de lagartixa, labyrintho cego de toupeiras, raça de ignobeis myopes, tysicos, tarados, anemicos, cancerosos e arseniados! Larga a cidade! Larga a infamia das ruas e dos boulevards, esse vae-vem cynico de bandidos mudos, esse mexer esponjoso de carne viva, esse sêr-lêsma nojento e macabro, essess zig-zag de chicote auto-fustigante, esse ar expirado e espiritista, esse Inferno de Dante por cantar, esse ruido de sol prostituido, impotente e velho, esse silencio pneumonico de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!”
Há uma certa unanimidade na categorizarão deste poema enquanto uma obra esteticamente futurista, pelos motivos violentos e sensuais que carrega em si, havendo menções explícitas de masturbação, inferno, tarados, chicotes, entre outras expressões que demarcam, sem dúvida, a agressividade pelo progresso e não conformismo que o movimento futurista tanto apregoa. Também me salta desde sempre à atenção o próprio espírito destemido de Almada Negreiros em denunciar os seus antepassados e contemporâneos e o desleixo em relação às artes, mencionando que o mesmo povo que se regozija e vangloria por ter criado Camões no seu berço (o próprio país), foi o mesmo que o deixou, em carreira desmoronada, morrer à fome.
“E inda há quem faça propaganda disto:
a pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões! ”
É-me dificílimo analizar escrupulosa e meticulosamente esta obra, que tanto me dizia na altura sobre o tempo em que o artista viveu, como me diz sobre o tempo em que agora me deparo. Enquanto jovens, a formarmos-nos numa Academia que preza gerar novos e hegemónicos movimentos artísticos, considero indispensável não deixar de olhar para artistas e poemas como estes, e que haja sempre alguém com tal destemido, que nunca deixe o palco artístico de Portugal cair sobre si próprio, por aparências ou falta de resiliência, que nunca deixemos o panorama das artes em que participamos cair em desuso, aborrecimento, hábito ou ferrugem.
poema aqui
ou poderá decarregar/consultar o arquivo do Projeto Gutenberg sobre as obras Almada Negreiros (em específico) aqui
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