quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Arrival e o confronto com a existência // Recensão

Há algo especial nos grandes filmes sci-fi no que diz respeito a explorar nossa humanidade. Eles frequentemente usam conceitos imaginativos que, no fundo, servem para evidenciar algo íntimo sobre nós mesmos, uma perspectiva profunda sobre a nossa existência. Arrival (2016) é um deles.
Após a chegada de múltiplas espaçonaves misteriosas na Terra, a linguista Louise Banks (interpretada por Amy Adams) é convocada pelos militares para liderar uma equipe na tentativa de traduzir o idioma alienígena, estabelecer uma comunicação pacífica e evitar uma potencial catástrofe global. A direção de Denis Villeneuve consegue orquestrar um drama astucioso e elegante, fisgando o público com uma abordagem anti-sensacionalista. Filmes sobre alienígenas visitando a terra não são novidade em Hollywood, mas este se destaca por sua grandiosidade poética e por uma solenidade enigmática que gera uma intriga hipnotizante.
Em termos técnicos há uma coesão dos elementos que servem à mesma visão: do visual etéreo misterioso reforçado pela cinematografia e pela trilha sonora até a total fluidez imagética. É um filme carregado de tensão e emoção crua e que conta uma história grandiosa, mas ao mesmo tempo muito íntima. O filme aborda ideias complicadas, por exemplo sobre como a cognição humana é determinada pela linguagem. Fala sobre como amor, luto, alegria, dor e perda podem ser refratados através do prisma da nossa compreensão do mundo. É um filme que convida a pensar, mas que trabalha suas ideias de maneira acessível.
Dentre todas as análises que podem ser feitas sobre, acredito que a via mais interessante seja interpretar o filme pela perspectiva filosófica da condição humana em relação ao confronto com a sua própria existência, e as metáforas que podem ser extraídas do filme a respeito deste tema.
Se olharmos para o inicio do filme, sem qualquer pressuposição sobre o passado de Louise, há sinais que sugerem que ela é uma pessoa que não abraça completamente a vida. Para começar, Louise parece estar bastante ligada à sua zona de conforto e segregada do resto do mundo, o qual testemunha na sua maior parte através de janelas e ecrãs de televisão enquanto leva a sua rotina diária. Não aparenta estar tão entusiasmada com o seu trabalho e parece levar uma vida muito calma sem eventos significativos. Ela é também relutante em perceber mudanças, o que fica especialmente claro quando a mudança é imposta a ela, quando os heptapods chegam à Terra: enquanto o resto do mundo reage a esse evento monumental, Louise parece ser a única que não está processando-o completamente, pois ela é a única que aparece à sua aula - e encontra a sala vazia. Esta lenta reação relativamente à mudança também é mostrada no telefonema com a sua mãe, sugerindo que ela é assim já há algum tempo: "você me conhece, estou sempre igual". Também podemos ver isso mais tarde, quando Louise é inesperadamente levada no meio da noite e pede 20 minutos para se preparar, mas apenas recebe 10: é um pequeno detalhe, mas mesmo assim, mais um sinal, apontando para a lenta reação de Louise a uma mudança repentina e a sua hesitação geral para enfrentar a vida. Mas o que pode ser dito a respeito da origem dessa hesitação?
Já que não nos é apresentado um background específico da história de Louise, podemos nos virar para uma história mais universal. Em "The Denial of Death", Ernest Becket escreve sobre os dois grandes medos que estão presentes em todos nós e nos caracterizam como seres humanos: o medo da morte e o medo da vida. Ambos, acredito, estão enraizados na nossa percepção e a nossa experiência do "tempo". Somos livres de mover-nos em dimensões espaciais, mas estamos limitados pela linha do tempo e forçados a experienciar essa dimensão momento a momento, testemunhando as nossas vidas movendo-se para a frente, sem poder alterar esse movimento. Ernest Becker aponta para um paradoxo que surge da nossa percepção transcendente do tempo, a nossa capacidade quase divina de observar todo o conceito de tempo, e, ao mesmo tempo, estar limitados a um corpo físico que nos condena a experienciar sem escapatória uma ordem pré-definida. Talvez a consequência mais importante deste paradoxo é que conseguimos perceber a nossa própria mortalidade. Sabemos que um dia iremos morrer e isto, naturalmente, nos assusta. A vida em sua totalidade é muita coisa para ser gerida por seres limitados como nós. A vastidão incompreensível do Universo, o fundamento ilusivo do seu propósito e o mistério total da nossa existência em toda a sua beleza e terror é demais, então nos encolhemos da vida. Tornamos ela mundana e aceitável porque, em nossas cabeças, se não nos envolvermos na vida não temos que encarar a morte. Parte deste processo é natural e até necessário para ultrapassarmos a vida diária sem estar constantemente exacerbados pela nossa existência e nos preocuparmos com o seu significado. Mas, quando nos encolhemos demais e nos escondemos numa bolha protetora como Louise, podemos acabar perdendo a vida na sua totalidade, o que não faz sentido, pois de qualquer forma a morte virá, independente de nossa atitude em relação a ela.
A chegada dos heptapods pode ser encarada como a chegada da existência em si, sendo os heptapods uma metáfora para exatamente aquela parte da vida da qual temos medo. Eles parecem ter uma completa percepção do tempo e uma noção de propósito para além da nossa compreensão. A tentativa de se comunicar com os heptapods pode ser ver vista como uma tentativa de comunicar com a manifestação da existência, mas para isso precisamos entender sua linguagem.
A linguagem não diz respeito apenas à comunicação uns com os outros. Ela também é uma ferramenta de dar significado ao mundo que nos rodeia. A linguagem nos permite catalogar e normalizar: nos permite olhar para os átomos a nossa volta e ver algo ordinário como um carro ou uma cadeira. A linguagem estabiliza o caos da existência, mas apenas até uma certa extensão, pois apesar de todas as possibilidades que oferece também é limitada: não nos permite articular a totalidade da existência e, por isso, falha em aliviar o nosso medo da mesma. Essa falha da linguagem em aliviar o nosso medo da existência é um grande tema em Arrival, explorado principalmente através da interação com os heptapods, quando Louise e sua equipe tentam perceber a linguagem extraterrestre para perguntar a questão vital que pode ser direcionada a toda a existência: "qual é o seu propósito?"
Depois do 1º encontro com os seres, Louise percebe que não vai conseguir se comunicar, se permitir ser controlada pelo medo e, conforme o crescente conhecimento da sua linguagem, começa lentamente a quebrar as barreiras, tendo como efeito mais relevante as visões do seu futuro, que vêm como memórias. É neste momento que chegamos ao mais complicado e talvez também ao menos percebido momento do filme: a dádiva que é ver o futuro, dada a Louise pelos heptapods.
O que realmente significa Louise saber o seu futuro? Parece que ela já não permite que o medo domine o curso de sua existência, já não se esconde da vida mas sim a abraça, tanto as coisas boas como as más. Sua nova linguagem a permitiu construir um significado e articular a existência de tal forma que aliviou o seu medo da mesma. Acredito que esse é o verdadeiro significado por trás da dádiva dos heptapods: Louise decidiu escolher a existência em vez da não-existência.
Argumento que isto também se aplica a nós, porque de alguma forma já conhecemos o nosso futuro: podemos não saber os eventos específicos que nos irão acontecer, como Louise sabe, mas sabemos com certeza absoluta que um dia iremos morrer e que não existiremos outra vez. Sabemos que ao longo do caminho existirá tristeza e dor, mas também beleza. Se nos deixarmos consumir por nosso medo, não vivenciaremos nada.
O nosso persistente medo da existência continua a nos impedir de abraçar completamente a vida e de valorizarmos todos os momentos. Acredito que Arrival traz consigo o poder de nos fazer encarar a vida sempre carregando conosco a questão: o que poderíamos fazer se não tivéssemos medo?

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