quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Do que a arte puder reparar






Cá fora chove copiosamente. Deram alerta laranja para aquela região do país e à medida que a tarde se esgota a escolha de um dia de tempestade para a visita começa a parecer tão barroca quanto o ambiente em que nos movemos. Uns voluntários apontam-nos o caminho para uma botas altas de borracha. Colocamo-las, não para circunavegar os terrenos que rodeam aquele Mosteiro de Santa Clara-a-Nova eregido no século XVII, mas para descer aos Confins de Memória, garagem que o artista brasileiro Rubens Mano inundou de água e onde suspendeu – tornando-os ainda mais portentosos e fantasmagóricos – cinco carros do Estado Novo. Alguns com quase meio século de pó conservado e tão assustadoramente intacto como o tempo a que pertenceram, agora aqui presentificado.
À medida que avançamos, os nossos passos obrigatoriamente vagarosos contra a força da água, provocam um leve marulhar que se mistura no cérebro com a batida lenta e demorada de um piano, deixando-nos também a nós suspensos de algo que parece poder vir a acontecer ou então, talvez seja isso, como simples sobreviventes de um requiem que repercute contra o esquecimento. Porque nem tudo está enterrado.
De acordo com a curadoria desta Bienal de Arte Contemporânea, os carros estavam à guarda da Universidade de Coimbra e de acordo com o que acrescenta ainda o jornal Público, pertenciam a Marcelo Caetano e Salazar.
A poderosa instalação/evocação deste artista de São Paulo, convoca os fantasmas da ditadura, obrigando-nos a emergir naquele meio aquático onde a água vinda das cisternas do mosteiro preserva uma memória que nos gela duplamente os ossos.




FOTOS CM

É a Anozero na sua segunda edição, desta vez sob o tema “Curar e Reparar”. Curadoria: Delfim Sardo. Coimbra de uma margem à outra invadida de arte contemporânea e o seu património arquitectónico de portas abertas, a pedir que se aproveite a extraordinária oportunidade de conhecer edifícios geralmente fechados ao público como é o caso deste mosteiro, epicentro da exposição, com cerca de 12 mil metros quadrados que durante o século XX estiveram ocupados pelo exército e desde aí está “devoluto”. Acontececeu entre 11 de Novemvro e 30 de Dezembro de 2017. Trinta e cinco artistas, 19 estrangeiros e 16 portugueses e intervenções que ocuparam dos conventos à Universidade de Coimbra, hoje Património da Humanidade, ou à própria Maternidade Bissaya Barreto.
“Há qualquer coisa que pode ainda ser arranjada, mesmo que pela exposição de uma ferida”, escreve Delfim Sardo a propósito do tema desta exposição e do que a arte pode ou não resgatar.
A grandiosidade e riqueza das propostas que obrigava a mais de um dia de visita, obrigou também necessariamente a uma escolha cirúrgica quanto ao que reportar. No torreão Sul do Mosteiro, mais uma obra que quase nos convida à imersão, também aqui na memória colectiva.





Vários ecrãs de grandes dimensões colocados lado a lado formam um semi-círculo de 180 graus. Instalação video de 8 canais e 15 minutos em loop, onde somos transportados como num carrossel que tem tanto de trágico como de lúdico e libertador. O que é uma marca do trabalho de William Kentridge, (Joanesburgo, África do Sul, 1955). E é a certeza mais uma vez de que se à arte não cabe realmente a hipótese de “curar ou reparar”, a possiblilidade de recriar exerce já de si e no limite, o efeito de nos reanimar.
Sobre esta instalação More Sweetly Play the Dance, o artista revelou a uma cadeia de televisão holandesa ter-se inspirado no conto de Gogol The Nose (O Nariz), mais tarde transformado numa ópera por Shostakowich e onde o autor russo coloca o absurdo como categoria central para compreender o mundo.
É de facto algo assim como uma dança do absurdo, esta animação de William Kentridge, onde personagens improváveis desfilam lado a lado com objectos transfigurados.
Um homem volteia sobre sí próprio como num transe ao som de uma voz longínqua que é um lamento. Entra uma orquestra de sopros. Em pano de fundo nuvens de carvão negro desenham-se e apagam-se. Actores e esculturas projectam-se como sombras chinesas contra este fundo nebuloso. Passa um profeta lançando panfletos ao ar. Um político esbraceja um discurso empoleirado num palanque, enquanto ao seu lado uma estenógrafa tecla ao ritmo veloz da música e uma bandeira cheia de anotações ilegíveis é penosamente arrastada. A fanfarra toca e anima-nos. A música desenvolve-se num crescendo que depois parece tombar, num ciclo infinito como no resto da acção. Um homem quase que rasteja com o peso de algo que carrega e que parece tão insustentável como a própria História. Talvez a da África do Sul, talvez a das migrações humanas que ainda hoje nos “passam à frente dos olhos” como neste trágico carrossel. Entram e passam personagens empurrando carrinhos de soro. A morte junta-se ao grupo e apoia-se com jeitinho num dos doentes. Passa uma bandeira vermelha desfraldada. O coro canta e segue a procissão. Podemos seguir em loop. Neste anfiteatro da nossa própria coreografia colectiva.


FOTOS CM


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.