Cá fora chove copiosamente. Deram alerta laranja para aquela
região do país e à medida que a tarde se esgota a escolha de um dia de
tempestade para a visita começa a parecer tão barroca quanto o ambiente em que
nos movemos. Uns voluntários apontam-nos o caminho para uma botas altas de
borracha. Colocamo-las, não para circunavegar os terrenos que rodeam aquele
Mosteiro de Santa Clara-a-Nova eregido no século XVII, mas para descer aos Confins de Memória, garagem que o
artista brasileiro Rubens Mano inundou de água e onde suspendeu – tornando-os
ainda mais portentosos e fantasmagóricos – cinco carros do Estado Novo. Alguns
com quase meio século de pó conservado e tão assustadoramente intacto como o
tempo a que pertenceram, agora aqui presentificado.
À medida que avançamos, os nossos passos obrigatoriamente
vagarosos contra a força da água, provocam um leve marulhar que se mistura no
cérebro com a batida lenta e demorada de um piano, deixando-nos também a nós
suspensos de algo que parece poder vir a acontecer ou então, talvez seja isso,
como simples sobreviventes de um requiem
que repercute contra o esquecimento. Porque nem tudo está enterrado.
De acordo com a curadoria desta Bienal de Arte
Contemporânea, os carros estavam à guarda da Universidade de Coimbra e de
acordo com o que acrescenta ainda o jornal Público,
pertenciam a Marcelo Caetano e Salazar.
A poderosa instalação/evocação deste artista de São Paulo,
convoca os fantasmas da ditadura, obrigando-nos a emergir naquele meio aquático
onde a água vinda das cisternas do mosteiro preserva uma memória que nos gela
duplamente os ossos.
FOTOS CM
É a Anozero na sua
segunda edição, desta vez sob o tema “Curar e Reparar”. Curadoria: Delfim
Sardo. Coimbra de uma margem à outra invadida de arte contemporânea e o seu
património arquitectónico de portas abertas, a pedir que se aproveite a
extraordinária oportunidade de conhecer edifícios geralmente fechados ao
público como é o caso deste mosteiro, epicentro da exposição, com cerca de 12 mil
metros quadrados que durante o século XX estiveram ocupados pelo exército e
desde aí está “devoluto”. Acontececeu entre 11 de Novemvro e 30 de Dezembro de
2017. Trinta e cinco artistas, 19 estrangeiros e 16 portugueses e intervenções
que ocuparam dos conventos à Universidade de Coimbra, hoje Património da
Humanidade, ou à própria Maternidade Bissaya Barreto.
“Há qualquer coisa que pode ainda ser arranjada, mesmo que
pela exposição de uma ferida”, escreve Delfim Sardo a propósito do tema desta
exposição e do que a arte pode ou não resgatar.
A grandiosidade e riqueza das propostas que obrigava a mais
de um dia de visita, obrigou também necessariamente a uma escolha cirúrgica
quanto ao que reportar. No torreão Sul do Mosteiro, mais uma obra que quase nos
convida à imersão, também aqui na memória colectiva.
Vários ecrãs de grandes dimensões colocados lado a lado
formam um semi-círculo de 180 graus. Instalação video de 8 canais e 15 minutos
em loop, onde somos transportados
como num carrossel que tem tanto de trágico como de lúdico e libertador. O que
é uma marca do trabalho de William Kentridge, (Joanesburgo, África do Sul, 1955).
E é a certeza mais uma vez de que se à arte não cabe realmente a hipótese de “curar
ou reparar”, a possiblilidade de recriar exerce já de si e no limite, o efeito
de nos reanimar.
Sobre esta instalação More
Sweetly Play the Dance, o artista revelou a uma cadeia de televisão
holandesa ter-se inspirado no conto de Gogol The Nose (O Nariz), mais tarde transformado numa ópera por
Shostakowich e onde o autor russo coloca o absurdo como categoria central para
compreender o mundo.
É de facto algo assim como uma dança do absurdo, esta
animação de William Kentridge, onde personagens improváveis desfilam lado a
lado com objectos transfigurados.
Um homem volteia sobre sí próprio como num transe ao som de uma
voz longínqua que é um lamento. Entra uma orquestra de sopros. Em pano de fundo
nuvens de carvão negro desenham-se e apagam-se. Actores e esculturas projectam-se
como sombras chinesas contra este fundo nebuloso. Passa um profeta lançando
panfletos ao ar. Um político esbraceja um discurso empoleirado num palanque, enquanto
ao seu lado uma estenógrafa tecla ao ritmo veloz da música e uma bandeira cheia
de anotações ilegíveis é penosamente arrastada. A fanfarra toca e anima-nos. A
música desenvolve-se num crescendo que depois parece tombar, num ciclo infinito
como no resto da acção. Um homem quase que rasteja com o peso de algo que
carrega e que parece tão insustentável como a própria História. Talvez a da África
do Sul, talvez a das migrações humanas que ainda hoje nos “passam à frente dos
olhos” como neste trágico carrossel. Entram e passam personagens empurrando
carrinhos de soro. A morte junta-se ao grupo e apoia-se com jeitinho num dos
doentes. Passa uma bandeira vermelha desfraldada. O coro canta e segue a
procissão. Podemos seguir em loop.
Neste anfiteatro da nossa própria coreografia colectiva.
FOTOS CM
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