sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Gelado como Conduto - "Room 29"


Languidamente minimalista e suavemente profético, “Room 29” é um sóbrio e elegante testemunho das inquietações que o espaço impessoal e místico de um quarto de hotel (contudo profundamente profícuo em revelações e provações pessoais) pode fazer surgir sobre o sujeito atuante. Mais do que os cinco anos que foram caminho até ao seu lançamento, a obra final é enraizada na experiência de Jarvis Cocker e Chilly Gonzales sobre o calibre intenso e modificador que o cinema pode reter no espectador e a orquestra de emoções e êxtase que podem ocorrer dentro das paredes de um hotel. Confronta os lugares-comuns que um hotel como o “Chateau Marmont” (inspiração real para o álbum) retém - juventude - limite - sexo - ritmo - eficácia - classicismo - rebelião - morte, com o efeito relâmpago de influência que o cinema e a sua Idade de Ouro norte-americana têm tido sobre a humanidade. A junção harmoniosa do sussurro airoso e desprevenido de Jarvis com o piano fluído e tranquilo, em crescendo emotivo, de Chilly Gonzales (com inspiração pós-moderna - de crises de representação e espiritualidade - do japonês Ryuichi Sakamoto) é o trunfo maior. Fazem deste compósito de dezasseis canções, um só soneto de intensa qualidade lírica, nova experimentação na intersecção da pop, electrónica e clássica e de simbiose rica na exploração da vivência pessoal dos músicos em torno do papel aculturalizante das imagens em movimento, com algum retro-gossip sobre eventos ocorridos no Chateau Marmont, Sunset Boulevard. Dentro do espectro rítmico que o álbum impõe, sobressaem sempre a plasticidade e a intimidade que o trabalho dos dois revela. O ouvinte é sempre interpelado por afirmações que nos parecem próximas. As melodias adivinham-se familiares, tímidas e amenas e toda a experiência do álbum torna-se numa viagem através da partilha com as nossas próprias fantasias sobre o espaço-quarto de hotel, as fantasias que ali já foram realizadas e o impacto que este espaço, enquanto catalisador ao novo e à criação de uma cápsula espácio-temporal onde tudo é permitido e esquecido, pode criar no interveniente. Plasmado em: “Is there anything sadder than a hotel room that hasn’t been fucked in?” e “Room 29 is where I’ll face myself alone.”  


Tearjerker - faixa 3 - 

“You are such a jerk”;
“You are tearjerker” ;
“Everybody always knew
The game that you were playing
You were fooling no-one
So we're glad that you are paying
But still she's gonna cry
Yeah still it's gonna hurt her”

O papel do Tearjerker enquanto forma de entretenimento corrosivo e quase subversivo, dissimulado mas directamente acutilante no seu préstimo - provocar tristeza e choro - é aqui alegoricamente personificado por um idiota que sozinho, num quarto de hotel, espera o fim do seu serviço enquanto vendido à tristeza. A melodia sonhadora embala a figura do parvo sentado na sua cama de hotel, imaculada e contrastante na puerilidade/profanação que admite. É uma canção do século XXI. Transporta o poder da canção como rede social inabalável.


Clara - faixa 5 - 

“Clara, dear Clara
Tell me, please do
How come your dear father
Was far smarter than you?

And Clara, dear Clara
What will you do
Now your only daughter
Has taken to the booze

It's a family drama
Though you lack the skill to write it down
'Cos Daddy used up all the ink
Then he took his pen and left town”

Insuflada de humor negro quase pícaro, esta canção é uma ode ao lado negro do hotel (Chateau Marmont). Clara é última filha viva de Mark Twain, que após um casamento falhado e um filho morto, se refugia em bebida e comprimidos num quarto de hotel. Em regime de canção de embalo ao desastre e ao infortúnio, é ironicamente melódica e divertida, uma das mais orquestradas do albúm. Encara o génio familiar desgraçado e, o hotel, como espaço para o desmazelo e a corrida ao poço do fim.


Interlude 2 - Five Hours a Day - faixa 10 -

“The fact of the matter is, if you’re average, you probably grew up watching 5 hours a day. Now, I bet you didn’t spend 5 hours a day talking to your parents.”


Com estas duas frases, ditas pelo historiador David Thomson, é apresentada a bandeja de influências com que as gerações-televisão cresceram. O papel desconstrutivo ao olharmos para o  cinema/televisão como agente do nosso próprio passado, leva a uma profunda reflexão sobre o papel deste no crescimento, na família moderna e na hipótese diferenciadora da utópica (ou distópica) retirada do meio das “moving images” da educação pós-moderna.


A Trick of the Light - faixa 14 -

“Ben-Hur is raiding the honesty bar
Cleopatra is taking a shower
Dinosaurs devour room service
Whilst astronauts explore the moon's surface
Isn't it funny it's only a trick of the light”

No final do álbum chega-nos o elogio final à magia do cinema, entre os meandros de uma composição musical em tom heróico e epopeico, o indivíduo que se expõe à fantasia de mundos novos está submerso num limbo realidade-cinema e, apesar de toda a construção de personalidade que o mundo real nos pode oferecer, os eixos adrenalínicos que o cinema oferece são ilimitados, e por isso fictícios. É a homenagem pessoal de Jarvis Cocker e Chilly Gonzales à redentora luz e luz-truque da imagem em movimento.



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