Apropriação ou adaptação cultural?
Uma análise sobre os elementos de Perfect Blue presentes em
Black Swan.
Para quem viu ambos os filmes Perfect Blue e Black Swan apercebe-se
de uma imediata semelhança entre o anime de Satoshi Kon com o live-action de
Darren Aronofsky, respetivamente. Ambos os thrillers psicológicos apresentam personagens
perturbadas e exploram temas com fracturação da realidade e perda de identidade.
Perfect Blue segue a um ídolo Pop, Mima, na sua mudança de
carreira para atriz. Há por parte dos seus seguidores uma dúvida geral de que conseguirá
suceder no seu papel de estreia: uma vítima de violação num crime psicológico de
cariz sexual. Ao longo do filme, Mima começa a perder o sentido de realidade,
misturando a história ficcional em que aparece, com os eventos dramáticos da
sua própria vida. Aquando a cena de violação, há uma conotação catastrófica que
vem com a libertação sexual da personagem, havendo, nesse momento, uma dissociação
daquilo que é, e de aquilo que já foi. A “velha Mima”, um ser transfigurado para
a realidade objetiva, torna-se assim materialização do ídolo pop inocente, para
um fã obsessivo, para a sua gerente Rumi, e para a própria, que é atormentada
por visões da sua imagem popstar que ameaça resgatar o seu passado.
Os seus próximos começam a morrer e com as várias camadas de
ambiguidade da fracturação da realidade, o espectador nunca tem a certeza do
que é que é real e do que é que é uma ilusão, do que a que é feito pela
protagonista e do que é que é feito pela espectativa das outras personagens, e
quanta da violência está efetivamente a acontecer ou se faz parte dos sonhos
delirantes de Mima. Até à cena final, que exibe uma luta entre a personagem
principal e uma ilusão da “ velha Mima” que é na verdade Rumi a projetar as
inseguranças de ambas as personagens em si.
Em Black Swan a protagonista Nina após muitos anos de ser negligenciada
pela sua companhia de ballet, ganha o seu primeiro papel substancial como ambos
os cisnes, branco e negro, numa produção de O Lago dos Cisnes, só para descobrir
que a sua técnica perfecionista está a impedia-la de atuar o mais licencioso
cisne negro
Ameaçando o seu sucesso surge Lily, uma personagem vivaz e
sexualmente livre, cuja técnica não é tao impecável, mas cuja presença compromete
a sua oportunidade de exercer o papel. Há também a problemática da mãe de nina,
uma mulher severa e autoritária que está a viver as suas ambições falhadas através
da sua filha, colocando-a num estado de inocência infantil permanente que é conflituosa
com os desejos sexuais represados da jovem adulta.
Estes desejos materializam-se quando o diretor do projeto pede-lhe
que explore a sua sexualidade de modo a poder atuar o papel, e esta fá-lo (ou
pelo menos acha que o faz) com a antagonista. Como no filme anterior, com esta libertação
sexual dá-se o desenvolvimento do enredo, a personagem começa a ter visões do
seu lado mais sombrio como forma do cisne negro a emergir, começando assim a
misturar o sentido de realidade entre ela e as duas personagens que interpreta,
eventualmente culminado na sua morte.
Num primeiro olhar pode-se entender as semelhanças dos dois filmes
como um acaso, mas sabe-se que o realizador americano comprou os direitos
legais de Perfect Blue para poder filmar uma cena na banheira em Requiem for a
Dream igual à do anime, logo, é clara a influência de Satoshi Kon nos seus
filmes e, apesar de o negar, a influência deste em Black Swan.
A primeira e mais óbvia semelhança esta nos nomes das
personagens sendo distinguidas apenas por uma letra, para além disto, o facto
de que ambas sofrem de dissociação de personalidade que está ligado ao seu corrompimento
sexual. A ídolo pop tem um colapso após gravar a cena de violação, e a
bailarina deixa de ser uma criança no corpo de uma mulher na cena de sexo com a
personagem rival. Ambas as personagens sentem uma imensa pressão na sua
carreira, profissão esta bastante sedutora mas que os filmes fazem questão de
mostrar o seu lado mais sufocante. O desenvolvimento dos filmes apresentam uma
loucura crescente, e ambos expõem alucinações iguais com as mesmas formas de representação
visual. Ambas veem, em reflexos e em fotos, uma imagem igual a si, a qual
julgam ser a pessoa que se estão a tornar, e ambas têm uma figura materna que
põe pressão sobre as suas careiras no caso de mima a sua gerente, e no caso de
Nina a sua mãe.
Será portanto Blac Swan uma adaptação de Perfect Blue? Ou esta
o filme a apropriar-se não só de um trabalho pré existente, como da cultura a
que este outro pertence?
No que toca a apropriações ocidentais de obras orientais
são sempre levantadas questões morais, se por um lado mostra fascínio pelo
trabalho alheio, por outro pega nos seus elementos culturais e aplica-os na
nossa sociedade de consumo, esses significados são produzidos em massa por puro
fetichismo do diferente, ignorando as relações humanas entre os povos. Dito
isto acho que Aronofsky não o fez por malícia, e se não comercializa o seu
trabalho como adaptação de Perfect Blue, nem assume a influência de Kon em
Black Swan (ou por não querer lidar com as questões de “whitewashing”, ou por
se querer distanciar do trabalho do realizador japonês) recolhesse a admiração que
tem por este, e consegue criar, na minha opinião, uma verdadeira adaptação
cultural, sendo por si própria uma entidade separada, pegando nos mesmos argumentos (ainda que involuntariamente) e
tecendo uma narrativa arrebatadora.
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