segunda-feira, 18 de junho de 2018

O Design e o Consumo

“Num mundo em mudança permanente, o designer é chamado a antecipar problemas, definir estratégias, gerar oportunidades e liderar projectos multidisciplinares. Essa circunstância de ter que interagir com os diferentes intervenientes no processo coloca-o numa posição ideal dentro das empresas ou instituições para conduzir e articular processos de mudança” 
O design não têm nenhuma definição fixa de limites, ou um ideal a ser seguido. A sua transformação conceitual é constante, reflectindo as mudanças nas ideologias. 
Tanto o Design como os designers são, e têm sido, algo indispensável no sistema comercial moderno. O design pensa nas actividades de produção e consumo, nas necessidade e desejos da pessoas, entra no mercado com o objectivo de definir quem somos, através de imagens, materiais e artefactos. Nas interfaces da cultura com o design, a relação é significante. Se a cultura do consumo torna o design necessário, o progresso tecnológico torna-o mais e mais possível, assim, o design carrega uma mensagem tecnológica dentro de um contexto sociocultural. 
É através destas grandes influências que se observa o progresso do design, como por exemplo, com a evolução tecnológica e o avanço industrial, surgiram as câmaras fotográficas que, por sua vez, deram origem aos photobooks de hoje em dia. O photobook é apenas um dos vários exemplares de design da actualidade, sendo uma ferramenta que para muitos fotógrafos se tornou um veículo de exibição do seu trabalho, e da comunicação da sua visão para um público de massas. 
Um dos photobooks exemplares que desperta o percurso do design em Portugal, bem como o encontro desta geração de designers com o “novo modernismo” é o livro de Vítor Palla e de Costa Martins “ Lisboa, Cidade triste e alegre”, publicado em 1959, classificado como um dos melhores entre os muitos Photobooks do pós- guerra sobre cidades europeias. 
No contexto de avanço tecnológico, surge também o cinema no século XIX com os irmãos Lumiere, e é a partir da perspectiva do design que aparece a sensibilidade e necessidade estética neste. A preocupação estética começa a ser notável no cinema através do género, e é na década de cinquenta em que os géneros começam a ser uma demonstração de design contemporâneos, com artistas como Saul Bass, que inventou a tipografia cinética. 

“O design irá continuar a ser influenciado pelo consumo, pelo sistema de moda por identidades de todos os tipos e pela produção, seja industrial ou de bases artesanais, assim como continuará sendo sustentado por ideologias e discursos fora de seu controle. Isto é um movimento contínuo, embora seu futuro seja – como tudo mais significativamente influenciado pelo passado” 
LANDIM, Paula da Cruz: Design, Empresa, Sociedade

Ser influência, ou influenciado, um designer tem que ser ambos, com a constante alteração, vê se por fim, que o design e o consumo não existiriam sem o outro, vão de mão em mão, criando inovações futuras baseadas no passado. São apenas o design e o consumo.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Desigualdade salarial


Ao longo dos anos a desigualdade salarial, é uma grande preocupação devido às mulheres terem o direito de receberem um ordenado equiparado ao dos homens e não serem discriminadas, devido a serem do sexo feminino.

Quando uma mulher procura um emprego, o empregador deixa de lado, as habilitações literárias, competências, profissionalidade e focam-se simplesmente na pessoa que tem a frente ser uma mulher. As Mulheres em muitos países têm uma média salarial muito mais baixa do que os seus colegas do sexo masculino, mas isso não é justo, na pratica, as mulheres têm tanto ou mais competências do que os homens. As mulheres muitas vezes têm mais trabalho, não só o trabalho remunerado, mas também responsabilidades com a família.

Muitas das vezes, as mulheres são vitimas de assédio sexual por homens, e como consequência disso, as suas carreiras profissionais são postas em risco, chegando inclusivamente a terem de deixar os seus empregos devido ao stress que é criado.

Segundo o estudo "Igualdade de Género ao Longo da Vida - Portugal no contexto europeu", as mulheres europeias, em média, têm mais qualificações académicas do que os homens, mas ganham salários mais baixos.

As mulheres têm salários inferiores aos dos homens em todas as profissões e em todos os países da Europa, desigualdade que se prolonga pela vida fora, com saídas precoces do mercado de trabalho para dar assistência à família, seja filhos, netos ou pais idosos, o que faz com que tenham uma carreira contributiva mais curta, pensões baixas consequência de terem descontado menos e um maior risco de pobreza devido a todos os factores que foram influenciadas.

Mas para se conseguir acabar com as desigualdades é preciso primeiro ter consciência que elas existem, apontando que às vezes pode haver alguma resistência devido à ideia de que muita coisa iria mudar em relação ao passado.

Nesse sentido, tanto homens como mulheres deveriam ter as mesmas oportunidades, as mesmas condições para constituir família, cuidar dos filhos e as tarefas domésticas não têm género. E principalmente as empresas, deixarem de fazer descriminação de sexos.

Apesar de ainda haver desigualdade entre os sexos, já existe mulheres a ocupar cargos de chefia e direcção no mundo empresarial assim como cargos públicos em vários países no mundo.




domingo, 27 de maio de 2018

A Arte e a Manipulação da sua Perceção

  Uma das características da arte é a sua capacidade de nos fazer sentir, mas serão esses sentimentos transmitidos, capazes de serem alterados e ate manipulados?será o espaço onde está exposta, o que a rodeia ou até outros factores, capazes de distorcer a nossa percepção do que retiramos de uma obra?
  A resposta é sim.
Um grande e mais óbvio exemplo deste efeito de distorção de percepção, é o agrupamento que por vezes se faz das artes plásticas com a musica. A musica é capaz de criar um ambiente e estado de espírito que acaba por afectar a maneira como interpretamos e sentimos o que estamos a observar.
  Peguemos talvez na mona lisa, de Da Vinci. Dependendo da musica que possamos estar a ouvir, voluntária ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente, o humor da mulher de representada pode-nos parecer variar, isto porque a nossa percepção esta a ser afectada por outro tipo de “estimulo”.
  Por esta razão, não é passado qualquer tipo de musica em museus, a não ser que a própria musica ou áudio sejam parte da obra de arte em si, embora de certa forma a própria distribuição das obras possa afectar a nossa percepção das mesmas.
  A nossa experiência ao observar uma “Guernica de Picasso, seria diferente se tivéssemos visto diferentes obras instantes antes. Um “tres de mayo en Madrid de Goya, faria-nos experiencial uma “Guernica” diferente de por exemplo um “carnaval do arlequim” de Miró faria. Diria ainda, que todas as obras que estão neste momento longe do seu inicial e principal destino, estão todas afetadas por esta alteração de percepção, porque não estão no meio em que o artista as imaginou e planeou que elas estivessem, ou já não são totalmente relevantes a nossa época... por exemplo um fresco renascentista, nos dias que correm, ele é interpretado, e podemos até entender o significado por trás dele, mas é certo que ele não nos “fala” da mesma maneira que “falava” as pessoas da época em que foi pintado, porque a temática já não só perdeu relevância, como houveram mudanças culturais.
  E embora esta afecção possa estar presente desintencionalmente em todo o lado, nos midia, assim como em filmes e documentários, o que sentimos, é, geralmente, altamente manipulado, pelo facto de como jogam com os nossos sentidos enquanto nos são apresentadas quaisquer obras de arte, seja com sons, com cores que rodeiam ou até a maneira que decidem abordar a obra.
  Deveríamos então ter mais cautela quando estamos perante uma obra?
  Sim e não.
  Sim, porque não devemos deixar que a nossa percepção da arte seja manipulada, perdendo as obras a sua essência por culpa de terceiros, ou até mesmo por culpa nossa. E não, porque a menos que seja uma obra contemporânea que se encontre no espaço e ambiente ideal que o artista visualizou, vamos sempre ser afectados por esta distorção na nossa percepção...
  O importante é percebermos a diferença entre distorção e tentativa de manipulação do que vemos e sentimos perante a arte.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Pinturas fugitivas





Sol Calero (n. 1982, Caracas) estudou na Universidad Complutense de Madrid e na Universidad de la Laguna em Tenerife. Vive e trabalha em Madrid. Recentemente tem exposta uma exposição na Kunsthalle de Lisboa. Para quem não conhece, a kunsthalle Lissabon é um projecto curatorial que parte da ideia de Kunsthalle não apenas como um local, mas sobretudo como uma instituição caracterizada pela realização de exposições temporárias, para existir como um embuste. A Kunsthalle Lissabon posiciona-se como uma alternativa intencional aos modelos tradicionais da prática institucional. 


Sol Calero tem vindo a desenvolver uma linguagem pictórica que funciona de maneira semelhante a souvenirs: uma representação idealizada de um lugar, que concentra em si múltiplas camadas de uma identidade auto-projetada. O souvenir não é um objeto retirado do seu contexto, mas antes um objeto criado para encapsular um contexto específico e disseminá-lo como uma interpretação abstrata. A artista recria o contexto da pintura como um souvenir. Na exposição presente na Kunsthalle apresenta molduras originais do Peru . As cores que utiliza baseam-se nos pigmentos da população em hierarquia descendente de combinações raciais. 


A figura 1 , Tente en el aire, foi a obra de que mais gostei. Onde a pintura é feita sobre a parede do espaço, tornando-se fugitiva. Fugindo da própria moldura imposta. A pintura escapa e transforma-se, mistura-se, criando os tons das combinações raciais. Escapa à formatação imposta pela moldura, como quem tenta escapar à formatação quadrada das televisões, computadores, telemoveis. Ganhando a percepção de que o mundo passa a ser infinito a um certo momento. E a noção de infinito elimina o centro do mundo. Uma despreocupação material na pintura, desmaterializando-a, tornando-a espaço. Efémera porque não se pode levar para lado nenhum. Mas hoje conseguimos levar esta pintura a qualquer parte do mundo, através do registo fotográfico e da internet. Conseguimos tornar algo que desaparece em algo que pode permanecer para sempre, um sempre que pode ser muito curto, cheio de condicionantes.  




Fig. 1 Sol Calero: Tente en el aire

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Paris, Texas - Recensão

          Paris, Texas (1984) de Wim Wenders, conta a história de um homem chamado Travis Henderson que desaparece durante 4 anos sem ninguém saber porquê. O filme começa com Travis a caminhar pelo deserto do Texas e a encontrar um bar onde desmaia e é ajudado. Foi levado para um hospital, onde durante a sua estadia não disse nada a ninguém, o médico acaba por chamar o seu irmão Walt Henderson para o vir buscar. Depois de uma busca pelo deserto Walt encontra o seu irmão Travis mais uma vez a vaguear e começam a viagem de regresso a casa. Durante a ausência de Travis o seu irmão tomou conta do seu filho juntamente com a sua mulher Anne Henderson. Com o passar do tempo a vida de Travis começa a recompor-se inclusivé já tem uma ligação mais próxima com o seu filho mas ainda não sabe onde é que a sua mulher está, Jane Henderson. Graças a Anne, Travis sabe onde a pode encontrar e vai ao seu encontro levando o filho. Jane trabalha num bordel, no primeiro encontro entre os dois ela não o consegue ver e ele não tem palavras para lhe dirigir. Travis deixa o filho num hotel com uma gravação a explicar que não conseguia mais estar presente na vida dele porque não se perdoava pelas coisas que tinha feito no passado. De volta ao bordel Travis vai falar com Jane mas desta vez vai contar tudo o que aconteceu, o motivo pelo qual se foi embora durante os 4 anos, para ela entender quem ele é. O filme acaba com Travis a ir embora e Jane a ir ter com o seu filho.




          Para além de ser um filme memorável pela empatia que Wim Wenders cria entre nós e a personagem principal, pela fotografia minuciosa de Robby Muller é também um critica à sociedade americana que vive numa completa alienação. Podemos notar essa critica quando Anne teme que o casamento com Walt acabe se o filho do irmão se for embora, como se a criança fosse o laço de união do casamento. Mas maioritariamente esta alienação faz-se notar na personagem principal que se afasta por completo da sua vida, sem explicações e sem avisar ninguém. Afasta-se da confusão de uma sociedade em crescimento que a cada dia que passa ganha mais velocidade. Travis quando conta que acorda e está em chamas a primeira coisa que fez foi tentar encontrar Jane e o filho, completamente sem noção que secalhar quem lhe pegou fogo foi ela por causa da relação abusiva que mantinham.
          Apesar de não ser um filme que se oiça falar todos os dias, é memorável pela crueza e naturalidade com que demonstra a realidade de uma vida e não de mais um romance ao qual já estamos habituados. E talvez por não ser mais um romance é que este filme continua vivo mas apenas pelo boca-a-boca. 


domingo, 14 de janeiro de 2018

The Truman Show - Recensão

O filme “The Truman Show”  retrata a vida de um homem que desde o nascimento foi criado dentro de um programa de televisão, sendo assistido por milhares de pessoas por todo o país, porém ele (Truman) não tem nenhum conhecimento de que sua vida é uma mentira, que todas as pessoas a sua volta são atores que estão ali apenas para fazer com que sua vida siga de acordo com o script do show, mostrando claramente uma situação de voyeurismo.

A história foi muito bem elaborada, de tal modo que podemos ver traços de programas de televisão que realmente existem (reality shows), somados com um pouco de exagero para criar uma situação que é ao mesmo tempo absurda, e assustadoramente próxima da nossa realidade, nos fazendo questionar o quão longe a indústria do entretenimento seria capaz de chegar para obter mais audiência.




Vemos que, para reforçar a ideia de que é um reality show no qual o personagem principal não tem conhecimento da sua participação, a filmagem desta produção foi feita através de vários ângulos incomuns, de modo a dar a ideia de “câmeras escondidas”. 



De modo geral, “The Truman Show” faz uma excelente crítica à cultura da nossa sociedade que é fascinada pela sensação de poder e controle que é passada através de programas nos quais podemos assistir a vida dos outros sem sermos observados de volta, e consequentemente aos nossos padrões de moral.

sábado, 13 de janeiro de 2018

Lady Bird - Recensão


Lady Bird, escrito e realizado por Greta Gerwig apresenta-se como filme de estreia para a realizadora. O filme estreou nos EUA no início de Dezembro do ano passado e tem data de estreia marcada em Portugal para 15 de Março deste ano. Nomeado para diversos prémios, desde a estreia nos EUA, o filme esteve entre os vencedores em várias ‘competições’, como é o caso dos Globos de Ouro onde venceu nas categorias de Melhor Filme de Comédia ou Musical, e Melhor atriz principal num Filme de Comédia ou Musical.

O filme foi gravado em Sacramento, Califórnia e retrata a vida de Christine ‘Lady Bird’ McPherson (Saoirse Ronan). Christine ou ‘Lady Bird’, nome que assume e que atribuiu a si mesma — “I gave it to myself. It’s given to me by me” — vive na pequena cidade de Sacramento com os pais, o irmão e a namorada do mesmo. Frequenta o seu último ano de secundário, numa escola católica privada. O filme retrata pequenos momentos da vida de Lady Bird, as relações que mantém a  nível familiar, escolar e romântico, tendo como principal foco a relação entre Lady Bird e Marion McPherson (Laurie Metcalf), a sua mãe. O objetivo de Lady Bird é sair de Sacramento e ir para uma universidade fora do estado da Califórnia. O filme mostra-nos o percurso desta rapariga que quer ser independente e sair do lugar onde sempre viveu, e de todas as restrições que este lhe impõe sejam estas impostas pelos pais, e em especial a mãe, ou pela política de uma escola religiosa. Mostra também as suas experiências enquanto adolescente e o crescimento que advém delas. Uma história de ‘coming-of-age’ que não deixa de focar desgostos amorosos e amizades turbulentas, aspectos já muito trabalhados neste tipo de história, mas  que se distingue pela sinceridade com que retrata a relação entre mãe e filha. 



Importa focar a relação entre Lady Bird e Marion, que se mostra muito importante no desenrolar do filme. São várias as cenas entre as duas que me ficaram na memória, pelo que vou relatar uma que, a meu ver caracteriza muito bem a sua relação. A cena tem início com Lady Bird e Marion num grande ‘armazém’ cheio de roupa, procuram o vestido perfeito para Lady Bird usar no jantar de Ação de Graças em casa do namorado, Danny. Enquanto procuram inicia-se uma pequena discussão entre as duas, mas assim que Marion encontra o vestido perfeito elas abraçam-se como se a discussão não tivesse acontecido. Neste momento conseguimos perceber que apesar das personalidades muito diferentes de uma e de outra, que muitas vezes as fazem entrar em conflito, elas conseguem superar esses momentos. Relembro-me também de uma fala de Lady Bird a meio do filme em que ela afirma “She hates me” referindo-se a Marion. Os vários momentos em que as duas aparecem juntas, têm sempre uma certa divergência de ideias entre duas. Lady Bird, em crescimento apresenta ainda uma visão optimista de um futuro onde tudo pode ser possível e Marion lhe tenta mostrar a versão mais realista do mundo, embora talvez não o faça da melhor maneira. Os momentos que partilham juntas, e outros que Lady Bird partilha com as restantes pessoas presentes na sua vida, contribuem para o crescimento de Lady Bird e também para uma tomada de consciência de que a mãe estava a fazer o seu melhor para a educar. A realidade crua com que esta relação nos é apresentada, as emoções que tanto Saoirse Ronan como Laurie Metcalf conseguem passar para o espectador são para mim o ponto alto do filme. O facto de o filme não haver qualquer embelezamento no retrato da relação é o que a torna tão real quanto é, e talvez por isso o filme seja tão especial para mim, porque consegui rever — em Lady Bird — muito da minha relação com a minha mãe e da sua evolução.

As cenas, que na sua maioria nos são apresentadas a meio de um momento, ou de uma conversa, compõem este filme que é feito de momentos apenas. Partes do dia-a-dia da vida de Lady Bird no seu último ano de secundário. Para mim, este é um dos factores que torna o filme muito emocional. O não existir de uma cena mais importante que as outras, mas sim de pequenas cenas em que todas elas têm relevância para o prosseguir da história é algo que torna Lady Bird muito real. A realidade representada no filme de uma forma muito sincera e crua, levou-me — enquanto via o filme — a uma dualidade, onde eu não estava certa se era o filme que me transportava para o seu universo, ou se o filme tinha sido recriado a partir de partes do meu e do meu dia-a-dia. Acredito que qualquer pessoa que veja Lady Bird será capaz de encontrar um pouco do seu universo no do filme. Desta forma, o espectador não só vê o filme, como também se entrega a ele, às histórias, às personagens e às emoções, que dele advém.







Mima,Nina,Mina,Nima???

Apropriação ou adaptação cultural?
Uma análise sobre os elementos de Perfect Blue presentes em Black Swan.

Para quem viu ambos os filmes Perfect Blue e Black Swan apercebe-se de uma imediata semelhança entre o anime de Satoshi Kon com o live-action de Darren Aronofsky, respetivamente. Ambos os thrillers psicológicos apresentam personagens perturbadas e exploram temas com fracturação da realidade e perda de identidade.  
Perfect Blue segue a um ídolo Pop, Mima, na sua mudança de carreira para atriz. Há por parte dos seus seguidores uma dúvida geral de que conseguirá suceder no seu papel de estreia: uma vítima de violação num crime psicológico de cariz sexual. Ao longo do filme, Mima começa a perder o sentido de realidade, misturando a história ficcional em que aparece, com os eventos dramáticos da sua própria vida. Aquando a cena de violação, há uma conotação catastrófica que vem com a libertação sexual da personagem, havendo, nesse momento, uma dissociação daquilo que é, e de aquilo que já foi. A “velha Mima”, um ser transfigurado para a realidade objetiva, torna-se assim materialização do ídolo pop inocente, para um fã obsessivo, para a sua gerente Rumi, e para a própria, que é atormentada por visões da sua imagem popstar que ameaça resgatar o seu passado.
Os seus próximos começam a morrer e com as várias camadas de ambiguidade da fracturação da realidade, o espectador nunca tem a certeza do que é que é real e do que é que é uma ilusão, do que a que é feito pela protagonista e do que é que é feito pela espectativa das outras personagens, e quanta da violência está efetivamente a acontecer ou se faz parte dos sonhos delirantes de Mima. Até à cena final, que exibe uma luta entre a personagem principal e uma ilusão da “ velha Mima” que é na verdade Rumi a projetar as inseguranças de ambas as personagens em si.



Em Black Swan a protagonista Nina após muitos anos de ser negligenciada pela sua companhia de ballet, ganha o seu primeiro papel substancial como ambos os cisnes, branco e negro, numa produção de O Lago dos Cisnes, só para descobrir que a sua técnica perfecionista está a impedia-la de atuar o mais licencioso cisne negro
Ameaçando o seu sucesso surge Lily, uma personagem vivaz e sexualmente livre, cuja técnica não é tao impecável, mas cuja presença compromete a sua oportunidade de exercer o papel. Há também a problemática da mãe de nina, uma mulher severa e autoritária que está a viver as suas ambições falhadas através da sua filha, colocando-a num estado de inocência infantil permanente que é conflituosa com os desejos sexuais represados da jovem adulta.
Estes desejos materializam-se quando o diretor do projeto pede-lhe que explore a sua sexualidade de modo a poder atuar o papel, e esta fá-lo (ou pelo menos acha que o faz) com a antagonista. Como no filme anterior, com esta libertação sexual dá-se o desenvolvimento do enredo, a personagem começa a ter visões do seu lado mais sombrio como forma do cisne negro a emergir, começando assim a misturar o sentido de realidade entre ela e as duas personagens que interpreta, eventualmente culminado na sua morte.
Num primeiro olhar pode-se entender as semelhanças dos dois filmes como um acaso, mas sabe-se que o realizador americano comprou os direitos legais de Perfect Blue para poder filmar uma cena na banheira em Requiem for a Dream igual à do anime, logo, é clara a influência de Satoshi Kon nos seus filmes e, apesar de o negar, a influência deste em Black Swan.


A primeira e mais óbvia semelhança esta nos nomes das personagens sendo distinguidas apenas por uma letra, para além disto, o facto de que ambas sofrem de dissociação de personalidade que está ligado ao seu corrompimento sexual. A ídolo pop tem um colapso após gravar a cena de violação, e a bailarina deixa de ser uma criança no corpo de uma mulher na cena de sexo com a personagem rival. Ambas as personagens sentem uma imensa pressão na sua carreira, profissão esta bastante sedutora mas que os filmes fazem questão de mostrar o seu lado mais sufocante. O desenvolvimento dos filmes apresentam uma loucura crescente, e ambos expõem alucinações iguais com as mesmas formas de representação visual. Ambas veem, em reflexos e em fotos, uma imagem igual a si, a qual julgam ser a pessoa que se estão a tornar, e ambas têm uma figura materna que põe pressão sobre as suas careiras no caso de mima a sua gerente, e no caso de Nina a sua mãe.




Será portanto Blac Swan uma adaptação de Perfect Blue? Ou esta o filme a apropriar-se não só de um trabalho pré existente, como da cultura a que este outro pertence?
No que toca a apropriações ocidentais de obras orientais são sempre levantadas questões morais, se por um lado mostra fascínio pelo trabalho alheio, por outro pega nos seus elementos culturais e aplica-os na nossa sociedade de consumo, esses significados são produzidos em massa por puro fetichismo do diferente, ignorando as relações humanas entre os povos. Dito isto acho que Aronofsky não o fez por malícia, e se não comercializa o seu trabalho como adaptação de Perfect Blue, nem assume a influência de Kon em Black Swan (ou por não querer lidar com as questões de “whitewashing”, ou por se querer distanciar do trabalho do realizador japonês) recolhesse a admiração que tem por este, e consegue criar, na minha opinião, uma verdadeira adaptação cultural, sendo por si própria uma entidade separada, pegando nos mesmos  argumentos (ainda que involuntariamente) e tecendo uma narrativa arrebatadora.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Gelado como Conduto - "Room 29"


Languidamente minimalista e suavemente profético, “Room 29” é um sóbrio e elegante testemunho das inquietações que o espaço impessoal e místico de um quarto de hotel (contudo profundamente profícuo em revelações e provações pessoais) pode fazer surgir sobre o sujeito atuante. Mais do que os cinco anos que foram caminho até ao seu lançamento, a obra final é enraizada na experiência de Jarvis Cocker e Chilly Gonzales sobre o calibre intenso e modificador que o cinema pode reter no espectador e a orquestra de emoções e êxtase que podem ocorrer dentro das paredes de um hotel. Confronta os lugares-comuns que um hotel como o “Chateau Marmont” (inspiração real para o álbum) retém - juventude - limite - sexo - ritmo - eficácia - classicismo - rebelião - morte, com o efeito relâmpago de influência que o cinema e a sua Idade de Ouro norte-americana têm tido sobre a humanidade. A junção harmoniosa do sussurro airoso e desprevenido de Jarvis com o piano fluído e tranquilo, em crescendo emotivo, de Chilly Gonzales (com inspiração pós-moderna - de crises de representação e espiritualidade - do japonês Ryuichi Sakamoto) é o trunfo maior. Fazem deste compósito de dezasseis canções, um só soneto de intensa qualidade lírica, nova experimentação na intersecção da pop, electrónica e clássica e de simbiose rica na exploração da vivência pessoal dos músicos em torno do papel aculturalizante das imagens em movimento, com algum retro-gossip sobre eventos ocorridos no Chateau Marmont, Sunset Boulevard. Dentro do espectro rítmico que o álbum impõe, sobressaem sempre a plasticidade e a intimidade que o trabalho dos dois revela. O ouvinte é sempre interpelado por afirmações que nos parecem próximas. As melodias adivinham-se familiares, tímidas e amenas e toda a experiência do álbum torna-se numa viagem através da partilha com as nossas próprias fantasias sobre o espaço-quarto de hotel, as fantasias que ali já foram realizadas e o impacto que este espaço, enquanto catalisador ao novo e à criação de uma cápsula espácio-temporal onde tudo é permitido e esquecido, pode criar no interveniente. Plasmado em: “Is there anything sadder than a hotel room that hasn’t been fucked in?” e “Room 29 is where I’ll face myself alone.”  


Tearjerker - faixa 3 - 

“You are such a jerk”;
“You are tearjerker” ;
“Everybody always knew
The game that you were playing
You were fooling no-one
So we're glad that you are paying
But still she's gonna cry
Yeah still it's gonna hurt her”

O papel do Tearjerker enquanto forma de entretenimento corrosivo e quase subversivo, dissimulado mas directamente acutilante no seu préstimo - provocar tristeza e choro - é aqui alegoricamente personificado por um idiota que sozinho, num quarto de hotel, espera o fim do seu serviço enquanto vendido à tristeza. A melodia sonhadora embala a figura do parvo sentado na sua cama de hotel, imaculada e contrastante na puerilidade/profanação que admite. É uma canção do século XXI. Transporta o poder da canção como rede social inabalável.


Clara - faixa 5 - 

“Clara, dear Clara
Tell me, please do
How come your dear father
Was far smarter than you?

And Clara, dear Clara
What will you do
Now your only daughter
Has taken to the booze

It's a family drama
Though you lack the skill to write it down
'Cos Daddy used up all the ink
Then he took his pen and left town”

Insuflada de humor negro quase pícaro, esta canção é uma ode ao lado negro do hotel (Chateau Marmont). Clara é última filha viva de Mark Twain, que após um casamento falhado e um filho morto, se refugia em bebida e comprimidos num quarto de hotel. Em regime de canção de embalo ao desastre e ao infortúnio, é ironicamente melódica e divertida, uma das mais orquestradas do albúm. Encara o génio familiar desgraçado e, o hotel, como espaço para o desmazelo e a corrida ao poço do fim.


Interlude 2 - Five Hours a Day - faixa 10 -

“The fact of the matter is, if you’re average, you probably grew up watching 5 hours a day. Now, I bet you didn’t spend 5 hours a day talking to your parents.”


Com estas duas frases, ditas pelo historiador David Thomson, é apresentada a bandeja de influências com que as gerações-televisão cresceram. O papel desconstrutivo ao olharmos para o  cinema/televisão como agente do nosso próprio passado, leva a uma profunda reflexão sobre o papel deste no crescimento, na família moderna e na hipótese diferenciadora da utópica (ou distópica) retirada do meio das “moving images” da educação pós-moderna.


A Trick of the Light - faixa 14 -

“Ben-Hur is raiding the honesty bar
Cleopatra is taking a shower
Dinosaurs devour room service
Whilst astronauts explore the moon's surface
Isn't it funny it's only a trick of the light”

No final do álbum chega-nos o elogio final à magia do cinema, entre os meandros de uma composição musical em tom heróico e epopeico, o indivíduo que se expõe à fantasia de mundos novos está submerso num limbo realidade-cinema e, apesar de toda a construção de personalidade que o mundo real nos pode oferecer, os eixos adrenalínicos que o cinema oferece são ilimitados, e por isso fictícios. É a homenagem pessoal de Jarvis Cocker e Chilly Gonzales à redentora luz e luz-truque da imagem em movimento.



O ESPELHO, Andrei Tarkovsky - Recensão





                                                                Poster de O Espelho , 1975




Andrei Tarkovsky cria uma ideia de meditação acerca da guerra, memória e tempo, conciliando eventos da sua própria vida. O Espelho fala acerca dos pensamentos e memórias de Alexei (representando o próprio Tarkovsky), e do seu mundo enquanto vários estágios da sua vida - criança, jovem adulto e meia idade. O filme fala numa estrutura descontinuada, combinando universos de sonhos e memórias acompanhados de arquivos noticiários.


Neste filme, Tarkovsky trata a ideia de uma justaposição das suas memórias de infância com as de um outro - numa nostalgia e encontro do eu - excepto de que esta ideia é expressa através do uso de memórias. Divide-se em três atos temporais, em diferentes estâncias da idade do realizador e possui uma dimensão autobiográfica que nos contrai a uma reflexão entre o ficcional e o real, entre a subjetividade e a objetividade.
Numa primeira observação deste filme, a confluência e junção das memórias é pouco percetível, tornando o filme resiliente na medida em que se “transforma” entre tempos. As vagas temporais e a recriação ficcional com arquivo surgem sem ordem concreta, com a diferença entre filme a cor e a preto e branco, sendo no inicio um fator de confusão para o espetador. A confusão persiste ao adicionado o facto de dois atores- Margarita Terekhova e Ignat Daniltsev - que interpretam determinado papel a determinado momento do filme, encaram outros em momentos posteriores sem qualquer distinção a nível físico. 



                                                                   O Espelho, Andrei Tarkovsky, 1975


À primeira crítica e observação do Espelho o filme é quase um enredo de memórias e confuso, contudo à medida que com determinado intervalo de tempo e quanto mais é visto, é-nos possível desembaraça-lo - acaba por dar relevância a certos detalhes ou cenas do filme e entender melhor esta narrativa intercalada. A banda sonora acaba por juntar a este filme a nostalgia e por vezes dramatismo que o mesmo cria,

Assim, o filme “Espelho” acaba por se tornar não só uma relação autobriográfica de Tarkovsky como nos acaba a levar a nós enquanto espetadores para um universo de imagens oníricas e carregadas de simbologias, quase que como se tratasse de uma peça musical ou teatro. Um filme que nos surpreende cada vez que é visto e nos encanta a cada uma dessas vezes.
Para alguém que esteja interessado no visionamento do filme, encontra-se no youtube legendado em inglês.

A Sibila

“A Sibila” da Agustina Bessa terá de ser uma das mais cativantes tramas por onde enveredei no último passado ano, num misto de alivio com apoquento o terminei no janeiro que encetou este novo, sem mais o peso confrangedor de ser escravo emocional da página seguinte, mas pobremente órfão, e viúvo, e desamparado na minha totalidade da eloquência seguida e certeira com que Agustina automaticamente acopla o leitor.
Fa-lo subordinado. O seu génio urge, e a obra é como se exigisse ser lida. E eu me apoquentei tão tanto senão por não poder lê-la pela primeira vez, de novo.
A narração corrida, com pouquíssimo fôlego de parágrafos, cadência num compasso de um cantarolar de música vaga.
É o quotidiano essa melodia.
E quanto mais próximo a ela, mais a vertigem abala- porque um país discreto e rural todo compactua na compreensão, mas por menos conterrâneo que seja o leitor, a humanidade presente em cada recanto do romance o acolherá, pertencente, a ver-se, espelhado, pelo menos em alguma das facetas escritas. que aqui comove.

“A Sibila”, que nada oracula porque de tudo faz passado, trata das mulheres, personagens, as narra. É uma rede de carácteres e a ocorrência irresumível. São vozes e alguns ecos, são as recônditas que Agustina dá voz, realidade ,e quiçá, realeza , no delicado teatro com que as disseca.
A voz da própria, chegou á cena literária em quase-década-dos-50, uma mulher que se insinuava com uma inquietante prosa realista, neo-realista, Camiliana talvez, barroca, soberba!! . Dava voz ao feminino, dava voz às luzes e escuridões que o mundo, fechado, desconhecia, não porque se desinteressava, simplesmente desconhecia, então se descortinou a índole mística das mulheres do norte, se descortinou a autora, as personagens, descortinado o novo estilo realista, foi um descortinar extenso, panejando página a página, revelava por muitas folhas escritas o tal quotidiano progredindo que se expande e fixa-se só por gosto. Música ao longe...

“-O casamento é mais que um imperativo da espécie. É a união de dois patrimónios. E as mulheres só gostam dos tratantes- dizia ela como se enunciasse um teorema de geometria “


A trama toda parece divagar, oscilar entre o sim e o não, num talvez constante,  na eternidade de cada individuo enquanto dura, e são estatutos e profissões, laços familiares e casos encobertos, nenhum escapa á sua investida lúcida que povoam a obra balofa, irrepreensivelmente, larga destes sem que os restrinja comodamente á representação de um só valor. É um dos picos do desconcerto- quando a personalidade se desdobra e o leitor traz-se a desconfiar mesmo dessa abstração. O carácter que teria admirado ao longo da história estaria crepusculando ao exibir o lado obscuro...

Quina, A sibilesca da novela, articula uma constelação de pertinência em valores, que calceta o pavimento para o impar que se desenvolve.


“Parecia agoniar recitando adeuses, palavras de informação, ou apenas movia os lábios num colóquio infinito, suave.”

“ Acreditando a moça  possuída do sobrenatural, vitima ou eleita, não sabiam. Dizia banalidades trechos de vida passada, e deixava os ouvintes suspensos, as almas estremecendo numa volúpia de inquietação curiosidade e esperança.”


Grande parte da narrativa é dedicada a descreve-la, havendo no inicio uma indireta proposta de lhe dedicar toda a restante obra como explicação, e no final uma sugestão de fecho com o seu próprio término. Em meio é mencionado o místico Santo Inácio de Loyola, e rapidamente o leitor mais cuidado, relaciona Quina com Santa Teresa de Ávila, ainda que distintas em propósito e localização, os dotes de ambas intrigam do mesmo jeito.

É a personagem que creio principal, e um pouco duvido já que com as suas duas irmãs divide protagonismo, a chamada “Sibila” que nomeia a totalidade, é um expoente de clareza trágica e demasia lúcida que assombra se real mas fascina romanceada.  Conjuga a vulgaridade da conduta humana, na astúcia do cúmulo, ora por gracejar no exagero, ora por o contrair na critica. Acredito que após o excesso de sensação eufórica que  o legado literário modernista habituou, digo, viciou o leitor, o neo-realismo não se poderia instalar plenamente sem este entorse no realismo. É uma estranheza que se matiza, e vai estranhando, até que a excitação já nos ardeu, em combustão lenta, na subtileza da percepção. Não se nota na obsessão que nos foca na obra, até que a amamos, e o carácter discreto-bizarro é interlúdio da paixão por este estilo.  Quina nos vence assim. Estranha e entranha- “A Sibila” triunfa.


«Ficou na memória, como alguma coisa de dantesco, porém sem esse estertorar espasmódico das cenas infernais, mas antes extraordinariamente discreto, reservado, abafado como um atroador clamor que choca com uma superfície intransponível a ali se prende e ameaça e ruge, mais terrível do que se explodisse na ampliação dos ares, o dia em que a louca desapareceu e não pôde ser encontrada»


Alardeado com o prémio Eça de Queiroz e Delfim de Guimarães, após a primeira publicação seguiram-se edições várias.
A Obra de Agustina é talvez cabeceada por este romance, eleito, mais pelo gosto público, não somente por sua colossalidade.
Para quem conhece melhor a coleção, sabe que outros monumentos se afiguram no conjunto, todavia nenhum tão popular. “A Sibila” foi aclamada por estrondo, não por análise. Foi que apareceu primeiro (é quarta obra), e as vindouras, se a excedem na  argúcia, perdem em frescura- mais brusquidão que novidade.
Se é isto condenável porque “o Vale Abrão” é épico e a “Corte do Norte” ainda mais ilustradora do estilo neo-realista  é, por outro lado aceitável, já que esta obra reúne em dose comedida elementos da sua produção futura. Atiça o atento para que se atire ao outro e outro romance. São aprimorações da autora.

É, portanto, afinal profética, “A Sibila”, que determina para um futuro o tipo de discorrer literário que encantará todo um idioma, transcendendo gerações, preferências estilísticas, e até o próprio. Pois impera em traduções, Agustina, além fronteiras e mares, espalhando a escrita que domina, nos domínios que estendem a humanidade. É esta que retrata. Caricata e assertiva.

Cloud Atlas - Recensão

  Estreado a 29 de novembro de 2012, Cloud Atlas (de Lily e Lana Wachowski e Tom Tykwer) retrata seis histórias que decorrem ao longo de seis eras diferentes. Cada história tem as suas respetivas personagens, cenário, enredo e, consecutivamente, um género diferente. Primeiramente, temos o drama de Adam Ewing (Jim Sturgess), o comerciante de escravos que luta pela sua vida em alto mar. De seguida temos a tragédia romântica do compositor homossexual Robert Frobisher (Ben Wishaw), passada na pré Segunda Guerra Mundial em Inglaterra. Em terceiro, um thriller sobre Luisa Rey (Halle Berry), uma jornalista de investigação que se questiona sobre corrupção numa central nuclear. A quarta história é uma comédia dos dias de hoje sobre um editor de livros confinado a um lar de idosos. Segue-se uma história de sci-fi (e pessoalmente a minha preferida) que se situa no século XXII em "Neo Seoul", cuja protagonista é Sonmi 451 (Doona Bae), uma espécie de robô humano escravo. E por fim, uma espécie de conto de fantasia num mundo pós-apocalíptico onde a humanidade regrediu a tribos primitivas (a personagem principal desta história é Zachry - Tom Hanks), e apenas alguns são possuidores de alta tecnologia e visam sair do planeta.




  Cloud Atlas conta com quase três horas de filme e, por isso mesmo, gera muita dúvida em relação ao seu visionamento. É um filme que nos obriga a estar atentos devido às suas diferentes histórias, e que nos faz sentir que se fizermos uma pausa "para ir à casa de banho", sem dúvida que iremos perder alguma parte relevante para o desenvolvimento do enredo/perceção do filme.
  Posto isto, o objetivo de Cloud Atlas é centrar-se nessas histórias de modo a mostrar como tudo o que acontece está interligado. Apercebemo-nos disso no filme através de pequenas coisas, como cenários ou adereços que são partilhados em enredos diferentes, ou coisas mais "marcantes" como o "Cloud Atlas Sextet" (que faz parte de um soundtrack que, na minha opinião, faz o filme) que não só forma toda a história passada em 1936, assim como aparece como um canto no meio dos fabricantes de Neo Seoul; numa loja de discos em 1973; e assim por diante (para além disso, o "Cloud Atlas Sextet" também se refere às seis personagens principais e aos seus destinos interligados). É um filme que se centra muito no conceito de reencarnação, mas de um modo em que algo que nós façamos num certo ponto da nossa vida, até mesmo séculos depois, nos irá afetar de alguma maneira.



  Outro aspeto que gostaria de destacar é a escolha do casting. Enquanto que as personagens em cada período de tempo são únicas, os mesmos atores representam todos os papéis. Para além disso, há sempre um significado específico para a escolha dos atores. Por exemplo, Hugo Weaving retrata sempre uma personagem associada à opressão, como um comerciante de escravos ou um Nazi; Halle Berry é sempre uma personagem boa, gradualmente crescendo, passando de uma escrava para a salvadora da humanidade; Tom Hanks é geralmente egoísta, exceto quando conhece Halle Berry e se apaixona; assim como Jim Sturgess e Doona Bae, cuja paixão se repete em 1849 e em 2144.
  Quanto a este fator, muitos críticos apontaram o dedo ao facto destes diferentes papéis por parte dos mesmos atores necessitarem de mudanças de maquilhagem de tal modo que teriam de mudar de sexo ou raça. Mas essas decisões são temáticas, reiterando a ideia de que todos os seres eventualmente reencarnam em todas as raças, sexos, clãs e situações. Independentemente de acreditarmos ou não nesta noção, o filme faz um ótimo trabalho a expressá-lo, ultrapassando o problema de se poder perder no que é politicamente correto.




  Resumindo, Cloud Atlas trata-se de um filme único que, embora não seja do agrado de muitos (talvez por não ser o típico "entretenimento relaxado"), é um filme que retrata, de uma maneira profunda e provocante, a condição humana. É uma obra que pode não apelar muito às massas mas que, na minha opinião, se tornará um clássico intemporal, visto ser bom demais para se tornar noutra coisa qualquer.

Exposição «Meus pequenos amores/my little loves», Sharon Lockhart — Recensão

Numa visita ao Museu da Coleção Berardo, tive a oportunidade de ficar a conhecer a obra de Sharon Lockhart, artista norte-americana que tem vindo a desenvolver trabalho — no âmbito da fotografia e do vídeo — sobre a temática da infância e da adolescência na Polónia. A exposição está alojada no piso -1, numa sala comprida, escura e de teto baixo. As fotografias emolduradas e projeções vídeo estendem-se pelo corredor compartimentado e, a meu ver, perdem força pela carência de amplitude expositiva e luminosidade.

O sugestivo título da exposição «Meus pequenos amores/my little loves» suscita, à partida, a existência de uma forte relação da artista com as crianças e adolescentes fotografados, como se as imagens em questão contassem não somente a história do retratado, mas também a de Sharon Lockhart, que se coloca atrás da câmera. De facto, o que me despertou interesse em visitar esta exposição foi o facto de, no passado, já ter trabalhado com crianças e de me ter ocorrido documentar essa experiência através de um registo fotográfico.
“Recentemente perguntaram-me como é que eu tinha feito a diferença na vida destas miúdas... Fiquei espantada, porque a pergunta devia ser ao contrário — foram elas que me mudaram, sou eu que já não sou a mesma.” [1]
As fotografias são visualmente sugestivas, devido aos seus fortes contrastes cromáticos e brilho intenso, que por vezes sugerem uma relação de semelhança com a pintura a óleo. Contudo, no decorrer da visita, o que me despertou mais a tenção no conjunto foi a qualidade de estudo e de encenação das obras. Isto é, a sensação de que os retratos, apesar de autênticos, foram altamente ponderados e que na sua composição não se equaciona o fator «acaso». De facto, a utilização da câmera fixa e as sequências narrativas sugerem o recurso à reencenação.

[2]

A personagem «Milena» é recorrente na obra de Lockhart, tendo sido ela quem a introduziu ao centro de Rudzienko, palco onde foram captadas grande parte das obras expostas. A observação da sequência de três fotografias, patente acima, foi para mim particularmente curiosa porque só num último momento, me é revelado o rosto da retratada, ainda que com alguma reticência.

Já no final da visita, na última sala, deparei-me com várias de cópias de uma folha de jornal polaca, que havia sido traduzida para português e que podia ser levada pelos visitantes. Só mais tarde, ao pesquisar, fiquei a saber que se tratava de reprodução do suplemento semanal «A Pequena Revista» escrito por crianças e publicado com o diário judaico «A Nossa Revista», entre 1926 e 1939. Saí da exposição com um exemplar na mão e de seguida, nos transportes, li alguns excertos. Na minha perspetiva, são pequenas subtilizas como esta — uma folha que pode ser levada para casa — que enriquecem a experiência do visitante, fazendo com que este tome a liberdade de fazer uma segunda reflexão acerca do que viu, ainda que já não se encontre no local.


[1] Lockhart, S. (Entrevista). Aqui Toda a Vida é Encenada. Canelas, L. Jornal Ípsilon. Acessível em: https://www.publico.pt/2017/10/25/culturaipsilon/noticia/aqui-toda-a-vida-e-encenada-1790060

[2] Milena, Jaroslay, 2013, 2014. Três provas cromogéneas com moldura.

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