“A Sibila” da Agustina Bessa terá de ser uma das mais cativantes tramas por onde enveredei no último passado ano, num misto de alivio com apoquento o terminei no janeiro que encetou este novo, sem mais o peso confrangedor de ser escravo emocional da página seguinte, mas pobremente órfão, e viúvo, e desamparado na minha totalidade da eloquência seguida e certeira com que Agustina automaticamente acopla o leitor.
Fa-lo subordinado. O seu génio urge, e a obra é como se exigisse ser lida. E eu me apoquentei tão tanto senão por não poder lê-la pela primeira vez, de novo.
A narração corrida, com pouquíssimo fôlego de parágrafos, cadência num compasso de um cantarolar de música vaga.
É o quotidiano essa melodia.
E quanto mais próximo a ela, mais a vertigem abala- porque um país discreto e rural todo compactua na compreensão, mas por menos conterrâneo que seja o leitor, a humanidade presente em cada recanto do romance o acolherá, pertencente, a ver-se, espelhado, pelo menos em alguma das facetas escritas. que aqui comove.
“A Sibila”, que nada oracula porque de tudo faz passado, trata das mulheres, personagens, as narra. É uma rede de carácteres e a ocorrência irresumível. São vozes e alguns ecos, são as recônditas que Agustina dá voz, realidade ,e quiçá, realeza , no delicado teatro com que as disseca.
A voz da própria, chegou á cena literária em quase-década-dos-50, uma mulher que se insinuava com uma inquietante prosa realista, neo-realista, Camiliana talvez, barroca, soberba!! . Dava voz ao feminino, dava voz às luzes e escuridões que o mundo, fechado, desconhecia, não porque se desinteressava, simplesmente desconhecia, então se descortinou a índole mística das mulheres do norte, se descortinou a autora, as personagens, descortinado o novo estilo realista, foi um descortinar extenso, panejando página a página, revelava por muitas folhas escritas o tal quotidiano progredindo que se expande e fixa-se só por gosto. Música ao longe...
“-O casamento é mais que um imperativo da espécie. É a união de dois patrimónios. E as mulheres só gostam dos tratantes- dizia ela como se enunciasse um teorema de geometria “
A trama toda parece divagar, oscilar entre o sim e o não, num talvez constante, na eternidade de cada individuo enquanto dura, e são estatutos e profissões, laços familiares e casos encobertos, nenhum escapa á sua investida lúcida que povoam a obra balofa, irrepreensivelmente, larga destes sem que os restrinja comodamente á representação de um só valor. É um dos picos do desconcerto- quando a personalidade se desdobra e o leitor traz-se a desconfiar mesmo dessa abstração. O carácter que teria admirado ao longo da história estaria crepusculando ao exibir o lado obscuro...
Quina, A sibilesca da novela, articula uma constelação de pertinência em valores, que calceta o pavimento para o impar que se desenvolve.
“Parecia agoniar recitando adeuses, palavras de informação, ou apenas movia os lábios num colóquio infinito, suave.”
“ Acreditando a moça possuída do sobrenatural, vitima ou eleita, não sabiam. Dizia banalidades trechos de vida passada, e deixava os ouvintes suspensos, as almas estremecendo numa volúpia de inquietação curiosidade e esperança.”
Grande parte da narrativa é dedicada a descreve-la, havendo no inicio uma indireta proposta de lhe dedicar toda a restante obra como explicação, e no final uma sugestão de fecho com o seu próprio término. Em meio é mencionado o místico Santo Inácio de Loyola, e rapidamente o leitor mais cuidado, relaciona Quina com Santa Teresa de Ávila, ainda que distintas em propósito e localização, os dotes de ambas intrigam do mesmo jeito.
É a personagem que creio principal, e um pouco duvido já que com as suas duas irmãs divide protagonismo, a chamada “Sibila” que nomeia a totalidade, é um expoente de clareza trágica e demasia lúcida que assombra se real mas fascina romanceada. Conjuga a vulgaridade da conduta humana, na astúcia do cúmulo, ora por gracejar no exagero, ora por o contrair na critica. Acredito que após o excesso de sensação eufórica que o legado literário modernista habituou, digo, viciou o leitor, o neo-realismo não se poderia instalar plenamente sem este entorse no realismo. É uma estranheza que se matiza, e vai estranhando, até que a excitação já nos ardeu, em combustão lenta, na subtileza da percepção. Não se nota na obsessão que nos foca na obra, até que a amamos, e o carácter discreto-bizarro é interlúdio da paixão por este estilo. Quina nos vence assim. Estranha e entranha- “A Sibila” triunfa.
«Ficou na memória, como alguma coisa de dantesco, porém sem esse estertorar espasmódico das cenas infernais, mas antes extraordinariamente discreto, reservado, abafado como um atroador clamor que choca com uma superfície intransponível a ali se prende e ameaça e ruge, mais terrível do que se explodisse na ampliação dos ares, o dia em que a louca desapareceu e não pôde ser encontrada»
Alardeado com o prémio Eça de Queiroz e Delfim de Guimarães, após a primeira publicação seguiram-se edições várias.
A Obra de Agustina é talvez cabeceada por este romance, eleito, mais pelo gosto público, não somente por sua colossalidade.
Para quem conhece melhor a coleção, sabe que outros monumentos se afiguram no conjunto, todavia nenhum tão popular. “A Sibila” foi aclamada por estrondo, não por análise. Foi que apareceu primeiro (é quarta obra), e as vindouras, se a excedem na argúcia, perdem em frescura- mais brusquidão que novidade.
Se é isto condenável porque “o Vale Abrão” é épico e a “Corte do Norte” ainda mais ilustradora do estilo neo-realista é, por outro lado aceitável, já que esta obra reúne em dose comedida elementos da sua produção futura. Atiça o atento para que se atire ao outro e outro romance. São aprimorações da autora.
É, portanto, afinal profética, “A Sibila”, que determina para um futuro o tipo de discorrer literário que encantará todo um idioma, transcendendo gerações, preferências estilísticas, e até o próprio. Pois impera em traduções, Agustina, além fronteiras e mares, espalhando a escrita que domina, nos domínios que estendem a humanidade. É esta que retrata. Caricata e assertiva.