terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O divórcio grave do conhecimento e da mitologia

Roland Barthes analisa e critica um artigo publicado pela revista Match, artigo este que conta a história de um menino branco que viaja para uma região apresentada como o “País dos Pretos-Vermelhos”. Bichon, a criança, sai do conforto de França para uma terra de supostos canibais, isto porque os pais desejam pintar em solo Africano. Este mesmo comentário de Barthes parte de um único pressuposto: “o mito pequeno-burguês acerca dos Pretos.”

Na revista Match, a raça negra é retratada enquanto sendo parasita, aterrorizante, horrenda e até perigosa, aliás, este perfil trata-se de um reflexo do olhar da sociedade na época. Tendo tal em conta, o pequeno Bichon e seus pais tornam-se autênticos heróis destemidos que enfrentam todo este terror. Contudo, se esta triste conotação relativa à raça negra fosse inexistente, não haveria qualquer tipo de “coragem” ou “bravura” relacionada com a viagem dos franceses. Tornar-se-ia uma virtude sem efeito, uma virtude sem fundamento.

A revista fala também da grande vitória de Bichon ao derrotar tal ser animalesco, dominar o mundo infernal dos peles negras e vermelhas. Nisto, eu gostaria de levantar a seguinte questão: Como é possível uma criança de apenas dois anos conquistar tudo isto? A resposta é absurdamente simples: não é. 

Quando uma criança nasce, esta não vem agarrada às conotações do mundo horrendo dos adultos, uma criança é o símbolo da pura ingenuidade, livre de qualquer preconceito ou ideia pré-estabelecida. Tudo advém da sociedade que rodeia os mais novos, os ideais e valores são passados de geração em geração, acabando por nem saber como ou de onde estes originaram.

Sendo assim, salienta-se de forma evidente a ilusória hegemonia que o homem branco tem perante si mesmo. Este coloca-se num alto pedestal, achando que consegue derrotar um mundo inteiro sozinho pois “os brancos foram feitos para serem deuses.”
O ser humano é tão arrogante que não se consegue pôr na posição do outro, pensando que é o único a  formar mitos. No entanto, assim como o homem branco criou uma conotação fortíssima à volta da raça negra, tal pode ser invertido. Digo com toda a certeza que o “País dos Pretos-Vermelhos” criaram também mitos de conotação negativa acerca dos brancos.

Assim, Barthes termina a análise com uma frase que resume o assunto na perfeição:
“A ciência anda depressa e a direito, mas as representações coletivas não a seguem, têm vários séculos de atraso; são mantidas em estagnação no erro pelo poder, a grande imprensa e os valores de ordem.”

Numa época mais atual, Charlton McIlwain, professor de Mídia, Cultura e Comunicação na Universidade de Nova Iorque, critica um anúncio televisivo de 1994, produzido pela campanha política de David Perryman, um caucasiano que se candidatava ao Congresso dos Estados Unidos, e que concorria com J. C. Watts, um congressista de raça negra.
Nesta campanha, o patrocinador serve-se da expressão “Afro”, quer a nível figurativo como metafórico, de modo a denegrir a imagem do afro-americano ao associar a palavra a inferioridade e criminalidade.

Nos dias de hoje, Charlton McIlwain disserta sobre a problemática que se instalou na Internet: a desigualdade racial. Algo assim é uma situação delicada pois os meios eletrónicos propagam qualquer ideia, certa ou errada.
Esta diferenciação de raças é muito mais notória do quer parecer aos olhos da generalidade. Quer seja no dia-a-dia de forma subtil, como uma ligeira distância nos transportes públicos, quer seja um ataque verbal de forma direta e abusiva, “o mito pequeno-burguês acerca dos Pretos” continua bastante enraizado.


Referências

BARTHES, R. (1957/1988) Bichon Entre os Pretos In Mitologias. Lisboa: Ed. 70.
MCILWAIN, C. (2007) Race, pigskin, and politics: A semiotic analysis of racial images in political advertising
MCILWAIN, C. (2016) Racial formation, inequality and the political economy of web traffic

http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1369118X.2016.1206137

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