quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Sobre "Stalker" de Andrei Tarkovsky


 O realizador do filme sobre o qual escrevo, Andrei Tarkovsky, escreveu um dia que "o cinema é o esculpir do tempo". Esta crença reflete-se ao longo de todos os filme de Tarkovsky, mas é, na minha opinião, particularmente forte em "Stalker" cuja melhor descrição seria de facto uma grande escultura do tempo.  A história é misteriosamente simples, lenta. O filme passa e é uma autentica experiência visual, sonora, textural e conceptual, mas no fim perguntamo-nos se de facto aconteceu alguma coisa. 
Numa realidade ela própria misteriosa, três homens fazem uma viagem a um local interdito, “a zona”, local este aparentemente rural e florestal onde algo aconteceu, talvez a queda de um meteorito ou talvez um acidente nuclear ou algo sobre natural, que fez daqueles sitio simultaneamente tóxico e incrivelmente fértil, com um energia vibrante que se sente ao longo do filme. 
Um escritor, o artista intelectual que procura inspiração e um professor, um cientista racional e empírico são guiados através da zona por um guia local, um stalker, uma espécie de profeta da “zona” que os leva a uma sala, a sala onde os desejos mais íntimos do homem são cumpridos. 
Os três homens viajam através da zona, cumprindo uma serie de regras e rituais aparentemente aleatórios impostos pelo guia.
Acho interessante a relação que se pode estabelecer entre a zona e a viagem que estes homens fazem e a questão da arte e do processo criativo. A zona é um local onde nunca se segue o mesmo caminho, onde nunca se pode voltar atrás , onde tudo parece mudar, seguir um caminho e simultaneamente dar a lado nenhum. 
O stalker, o guia, diz algures no filme que a zona é um local apenas para os infelizes, os sem esperança. Mas é também um local de fé onde só vale a crença. E os dois visitantes céticos acabam por entrar nesse jogo de crença, e todos os rituais e caminhos parecem fazer sentido enquanto se acredita. 
Toda a viagem, lenta, é uma espécie de odisseia onde os homens se questionam a si próprios e uns aos outros, a suas intenções e as suas crenças, questionam a legitimidade do local, a legitimidade do desejo e da crença, na zona e no mundo para lá da vedação. 
Como viver num mundo de descrença? Como poderá o homem continuar? E que papel pode a arte ter neste mundo? 
Serão os desejos mais valiosos quando não realizados, será essa a própria natureza do desejo, da verdade? a sua incessibilidade? 
Estas interrogações estão muito presentes através dos diálogos entre personagens mas também através da poética cinematográfica de Tarkovsky, planos lentos  e extremamente intensos, imagens que nos parecem quase impossíveis mas tão verdadeiras que nos invadem, que inundam o espectador, ou, como Tarkovsky preferiria, a testemunha. 




“Stalker" é de certa forma uma parábola de fé que, no entanto, não oferece qualquer resposta. Mesmo quanto aos poderes místicos da “zona”  ficamos incertos se de facto existem ou são apenas um devaneio dos homens que procuram desesperadamente algo em que crer. 
A viagem termina com os três homens sentados de costas para a tal sala, nenhum deles entra. 
O escritor porque receia a natureza do seu desejo mais intimo, talvez queira permanecer infeliz para continuar a escrever, ele próprio afirma “O Homem escreve porque está atormentado, porque duvida”.  O professor, cientista, revela o seu plano de destruir a sala, talvez para se proteger do desconhecido mas também por uma impossibilidade de viver com  aquilo que é incapaz de conhecer, de explicar. Acabou por não o fazer. Estes comportamentos acabam por ser de certa forma uma aceitação da  incapacidade do homem perante a verdade, restando apenas a rendição e, mais uma vez, a possibilidade de crença. 
O guia demonstra-se também incapaz de entrar na sala, atormentado, ele revela que os stalkers nunca podem entrar na sala que estão destinados a deambular eternamente, a guiar os outros mas nunca a si próprios. Para mim, é esse o paradigma do Artista e também o seu maior tormento, o de mostrar o caminho mas nunca chegar ao destino.

Este é um filme que se revela fenómeno, que nos inunda de questões e imagens mas também um filme de divagação pura que acaba por não afirmar definitivamente nada, um pouco como a natureza apodera-se de tudo e não oferece qualquer explicação.  

A primeira cena do filme é um plano de um copo a vibrar mexendo-se sobre uma mesa e depois o som de um comboio a passar. A ultima cena é o plano de uma criança, a filha do stalker, um espécie de mutante devido à sua exposição à “zona”, a mover três copos numa mesa através de telecinésia (poder da mente) e depois, depois o som de um comboio a passar. O milagre, o místico,  e o fenómeno natural, explicável, acabam por ser praticamente iguais, ambos misteriosamente quase nada.

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