Roland Barthes dissertou sobre um artigo da revista Match que contava a história de um menino branco, o pequeno Bichon, numa "terra de canibais". A análise de Barthes evidencia, mais que o caráter obviamente racista da publicação (que não era tão óbvio assim à data de redação do texto), um fenómeno que hoje se chama "white savior complex" em inglês, ou, em português, o "complexo do salvador branco".
Histórias como a do pequeno Bichon não desapareceram do nosso imaginário coletivo. Elas evoluíram e foram filtradas por uma aparente evolução social que não é mais que isso: aparente. Os discursos de hegemonia não evoluem espontaneamente de modo tão acelerado, eles trazem consigo uma bagagem que permeia todos os aspetos do tecido social. Eles continuam presentes ainda que dissimulados e são facilmente expostos através de uma análise crítica de fenómenos globais como o que foi referido acima.
Em pleno século XXI, o complexo do salvador branco é evidente nas redes sociais, que o alimentam e reforçam de forma perigosa. Tornando este assunto mais concreto; este complexo refere-se a um fenómeno que está de certo modo ligado à indústria do turismo, ou melhor, do "voluntourism", neologismo inglês que tem vindo a ser adotado por críticos desta indústria, e que liga o turismo ao voluntariado, essencialmente em países ditos do "terceiro mundo". Essencialmente, turistas de países de primeiro mundo, com posses e enquadrados no topo do esquema social de privilégio, procuram experiências que os recompensem moralmente, ilibem a sua consciência de ter noção da classe a que pertencem e que lhes dêem a ilusão de que ajudaram efectivamente um grupo de pessoas necessitadas.
O domínio capitalista encontrou nesta vontade um mercado, um nicho, uma indústria pronta a ser explorada. Centenas de americanos e europeus procuram experiências transformadoras que se podem materializar na construção de escolas no Uganda, casas no Haiti ou ainda em abraçar órfãos no Bali. A equação operacional é sempre igual em todos os casos: ocidentais ricos podem fazer o bem, experimentar algo que as suas vidas afluentes não oferecem, e ter histórias para contar que supostamente os colocam num patamar moral superior.
Por muito altruísta que soe, o problema com o fenómeno do "voluntourism" é o seu foco singular na procura de uma experiência por parte do voluntário em detrimento das reais necessidades da comunidade recipiente.
A sedução redutora dos problemas dos outros enquanto coletivo é o que leva milhares de turistas a realizar voluntariado sem a mínima noção dos paradigmas culturais, económicos e históricos que levaram à situação dos países que são os seus alvos. Tudo advém de uma perspetiva ocidental de que os nossos problemas são mais complexos e difíceis de resolver e que para países de terceiro mundo basta fazer um conjunto de boas acções para que as próprias se mantenham e tenham repercussões positivas. Nada de mais ilusório. De que vale a construção de casas para famílias que seguidamente não têm educação e formação para sustentar as mesmas? Casos reais como estes são produto de um mecanismo que serve as aparências, que alimenta o narcisismo ocidental e o complexo de salvadores, de heróis, de descobridores e educadores que vem desde a era dos descobrimentos e que traz consigo um peso imperialista, colonialista e, inevitavelmente, racista. A lógica hegemónica na sociedade ocidental branca pode manifestar-se desses modos inocentes, permanecendo disfarçada, escondida sob o véu de um "bem maior".
Estas lógicas são reforçadas pela era da comunicação em que vivemos, na qual é possível partilhar instantaneamente fotos para todo o mundo, informando amigos e familiares do trabalho árduo que a pessoa está a realizar no estrangeiro. É criada uma cultura visual que fomenta a pena Fotos desses turistas voluntários com crianças subnutridas ou famílias claramente pobres rouba a essas pessoas o direito à sua própria narrativa, centrando tudo na elevação e deificação do branco bem-feitor. Mais que isso, os antropólogos Arthur e Joan Kleinman dizem que imagens de crianças e mulheres distantes, em sofrimento, sugerem que as suas comunidades são incapazes ou que estão desinteressadas no bem estar das suas próprias pessoas. Tais fotografias justificam atitudes e políticas paternalistas e colonialistas, sugerindo que o indivíduo da fotografia tem ser protegido, bem como representando, por outros, sendo esses "outros" a comunidade ocidental.
"The image of the subaltern conjures up an almost neocolonial ideology of failure, inadequacy, passivity, fatalism, and inevitability. Something must be done, and it must be done soon, but from outside the local setting. The authorization of action through an appeal for foreign aid, even foreign intervention, begins with an evocation of indigenous absence, an erasure of local voices and acts."Não podemos partir do pressuposto que há que eliminar toda a forma de "voluntourism". Efetivamente há casos em que produz efeitos positivos, mais do que as aparências transmitem. Porém há, sim, que debater as reais motivações de quem procura estas missões, pois apesar de poderem ser verdadeiramente altruístas, esse altruísmo é muitas vezes alimentado por um paternalismo ocidental tóxico, associado frequentemente a uma necessidade de validação através das redes sociais e a uma espécie de narcisismo fotográfico eurocêntrico.
Arthur Kleinman e Joan Kleinman
REFERÊNCIAS e LEITURAS ACESSÓRIAS:
BARTHES, R. (1957/1988) Bichon Entre os Pretos In Mitologias. Lisboa: Ed. 70.
DASGUPTA. (2017). #InstagrammingAfrica: The Narcissism of Global Voluntourism. Consultado a 19 December, 2017, de https://psmag.com/economics/instagrammingafrica-narcissism-global-voluntourism-83838
. (2016). The Reductive Seduction of Other People’s Problems. Consultado a 19 December, 2017, de https://brightthemag.com/the-reductive-seduction-of-other-people-s-problems-3c07b307732d
. (2016). Your White Savior Complex is detrimental to my development. Consultado a 19 December, 2017, de http://tmsruge.com/2016/03/21/your-white-savior-complex-is-detrimental-to-my-development/
. (2017). The white tourist’s burden. Consultado a 19 December, 2017, de http://america.aljazeera.com/opinions/2014/4/volunter-tourismwhitevoluntouristsafricaaidsorphans.html
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