segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

A Catedral, o Citroen, as Convenções

O paralelismo concebido por Roland Barthes - no texto "O Novo Citroen" - entre a catedral e o novo automóvel da marca é pautado por uma incrível descrição sinestésica de ambas as criações.
 A materialização do objeto "mágico" de autor desconhecido, como define Barthes, é uma experiência vibrante e imperdível para o ser humano, que vê os seus sentidos tentados pelo "brilhante", pelo novo, por aquilo que lhe foi anunciado e que finalmente chega.
Na sociedade contemporânea, é frequente a organização de convenções, não só de automóveis mas também - e até mais frequentemente -  de tecnologia. Assemelha-se à Catedral: cada local tem um mostruário onde são expostos telemóveis, câmaras, televisões. Substituiem-se figuras de Santos por novos objetos: mais recentes, mais reluzentes, com qualquer característica melhorada em relação a modelos anteriores. E há também um novo modelo de altar, com um local destinado aos espetadores e um outro destinado a uma pessoa convidada a discursar acerca das qualidades que o novo produto - tão ansiosamente esperado - oferece.
Essa espera, essa promessa, culmina na materialização do objeto, que finalmente pode ser visto, tocado, até cheirado e ouvido. Num êxtase quase religioso e numa mostra quase pornográfica, acaba por não estar em causa a qualidade do produto ou aquilo que tem para oferecer. Nunca numa igreja o tamanho ou a riqueza decorativa determinou a fé de quem a frequenta; mas o número de fiéis poderá estar relacionado com a carga sinestésica das estátuas, dos cheiros, das missas e dos ritos.
O mesmo se observa na compra dos tão famosos telemóveis da Apple, que são aguardados por seguidores fervorosos, que mantêm uma fé cega no produto que lhes apresentam, como se tivesse sido enviado por uma entidade divina. Os que criticam o telemóvel objetivamente vêem-se eles mesmos criticados, como se de hereges se tratassem, como se questionassem uma autoridade superior, que não se presa a ser criticada.
O não-consumo destes produtos - a nível social - significa pobreza, significa atraso. Esse mesmo estigma é a principal garantia da marca em relação ao número de vendas. A construção dessa aura divina leva não só ao consumo mas também o garante, obrigando todos a sujeitarem-se ao novo sagrado: foi essa a estratégia da Catedral, foi essa a estratégia do Citroen e é essa a atual estratégia das convenções tecnológicas.

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