Electronic Superhighway (1966-2016)
MAAT, 08 Nov 2017 a 19 Mar 2018
Prestes a entrar na exposição Electronic Superhighway somos recebidos pelo holograma de uma pessoa em tamanho real, que, por trás do seu balcão, com olhos neutros e um sorriso quase constante e frio (relembrando-nos da máquina que é) nos informa (até) quando somos considerados cidadãos. Estamos praticamente a entrar num aeroporto, um espaço de não-nacionalidade (faz-de-conta), onde as trocas acontecerão, neste caso, entre nós e os objetos apresentados. A seguir saem do sulco intra-nadegueiro de um rabo enorme mensagens de aplicações de smartphone: uma espécie de nude não solicitada, onde nem o conteúdo das mensagens nem o rabo em si importam de facto, apesar da sua incrível dimensão.
Percebemos que entrámos numa qualquer ideia de futuro, quer seja anterior a nós ou não. Vemos um printscreen impresso em alumínio, descontextualizado; um letreiro antigo que nos põe numa espera atual e indesejada dentro do imediatismo ao qual nos habituámos: a dos aparelhos digitais a “pensar” — loading…; e o Pacman, melancólico, quotidiano, gravado [não interativo, e, por isso mesmo, tornado vídeo(-não jogo)], elevado a arte pela sua colocação num museu, que nos obriga a repensar a sua posição no mundo, nem que seja pelo som produzido, que, em última instância, pode ser interpretado como música experimental.
Passamos então para uma sala onde a identidade humana é escondida, deturpada, reprogramada e até fingida. Há um conjunto de pinturas baseadas aparentemente em frames captados num chat roulette, onde as caras se tornam irreconhecíveis pela técnica usada para as representar, ou omitidas pelo enquadramento da câmara, revelando-nos apenas pénis eretos ou outras coisas impossíveis de identificar. Aqui encontramos também uma imagem impressa de uma pessoa que pode ter sido criada com recurso a animação 3D ou corrigida no photoshop de forma a parecer uma boneca — trata-se de uma personalidade inventada para testar os limites entre o real e a ficção nas redes sociais. Há também um kit de reprogramação de género chamado QT que nos relembra que os conceitos de homem e de mulher são construções sociais introduzidas em nós tal qual software. A completar a sala estão umas pinturas em grande formato de retratos frontais (clássicos no enquadramento) nos quais são substituídos os rostos por manchas de cor lisas e geométricas, fazendo perfeita ligação entre o mundo digital e a questão da identidade abordadas neste conjunto de obras, fruto de um inteligente trabalho do curador.
No espaço seguinte, os objetos reunidos falam sobre o valor económico e político da arte, cruzando-o com noções de entretenimento num mundo onde o nilismo parece ser estrutural. O primeiro vídeo é composto apenas por tipografia preta sobre um fundo branco, onde a efemeridade das palavras (que aparecem/desaparecem de forma rítmica) e da vida são evidenciadas, ao mesmo tempo que é feito um elogio irónico à SAMSUNG, que é aqui apresentada como salvação espiritual. A noção de consumo é trabalhada em duas outras imagens aparentemente fotográficas onde se vêem espaços forrados, na sua totalidade (desde o chão aos objetos neles presentes), por padrões de pinturas de Monet. A ocupação efémera do espaço e do tempo é acentuada pelo posicionamento de uma escultura “flutuante” junto de duas paredes que formam um canto, onde foram desenhadas linhas simples, a grafite, que parecem ser formas recolhidas desse mesmo objeto. Os pequenos desenhos estão assinados com a data na qual foram produzidos, materializando assim a noção de passagem do tempo, que é, pelo contrário, congelado num outro vídeo desta sala: é-nos dado um plano fixo, contrapicado total, de uma pessoa com saia, tornando assim as suas cuecas visíveis — nem a pessoa nem a câmara se mexem, e por isso o vídeo pode ser eterno, sem início nem fim. A perspetiva adotada para esta imagem é já, hoje, um clássico de adolescentes — ver por baixo das saias, quer seja diretamente, através de espelhos ou usando uma câmara—, o que confere a este vídeo uma certa dose de quotidiano. Outro dos filmes que usa o registo do dia-a-dia é uma compilação de vídeos de Youtube nos quais a ironia é a principal fonte de divertimento: o artista comenta, por exemplo, ideias intelectuais como o Pós-Estruturalismo e o Sublime da mesma forma leviana com que muitos dos vídeos são produzidos nesta plataforma de consumo. Logo ao lado temos um microfone associado a um ecrã de karaoke. Aqui a música acompanha letras com frases alusivas à guerra no Iraque e à vida dos soldados, aliando política ao lazer, tal como acontece em muitos regimes autoritários, nos quais as pessoas são controladas através de mecanismos de distração, impostos sob a face de divertimento gratuito. Do outro lado vemos três ecrãs totalmente vermelhos postos lado a lado, como se de janelas para o nada se tratassem. O artista pensou neles como uma manifestação do alerta geral, constante e já comum nos dias de hoje: a possibilidade de novos ataques terroristas.
Na sala seguinte, o que liga todas as obras é a noção de um espaço digital onde novas realidades são possíveis: há uma imagem (muito feia, na minha opinião), extremamente manipulada em photoshop de 3 formas diferentes; um mural “quase infinito”, impresso em papel, de conteúdo encontrado na internet; um conjunto de pinturas digitais abstratas, com cores muito brilhantes, impossíveis de conseguir impressas; um computador e respetivo ecrã, rato, teclado e colunas, todos partidos no chão, através do qual vemos imagens de adolescentes furiosos com os seus aparelhos eletrónicos, parecendo ele mesmo uma consequência dessa raiva; uma escultura em forma de robot, feita de antenas, rádios e televisões em zapping, que remete para o Homem Sentado de Paul Virilio (que não se mexe mas tudo controla, exceto a sua própria vida); e ainda uma fotografia da Paris Hilton a fazer Ski, como se da sua página de Instagram se tratasse, na qual o único movimento visível é o de uns reflexos animados na imagem— aqui podemos pensar: o que é mais estranho, a Paris estar imóvel enquanto a água (ou qualquer coisa do género) se mexe, ou a própria aplicação Instagram, que geralmente vive de um scroll constante, estar paralisada?
Numa pequena sala, parcialmente isolada, está um olho digital maior que nós, que reage à nossa presença e nos segue os movimentos. Poderia eventualmente dar-nos a sensação de estarmos, realmente, a ser observados, não fosse os pequenos erros de deteção de movimento dos sensores da peça, que nos relembram tratar-se de uma aparelho eletrónico e não de um Verdadeiro Ser Observador. Numa sala ao lado está projetado um vídeo que utiliza a estética da captura de ecrã, onde são acumuladas imagens que ridicularizam aquilo que, de outra forma, poderiam estar a figurar: a narração de um texto sobre a criação do mundo, em tom de pregação, acompanhado de música rítmica que nos mantém ligados ao ecrã. A energia musical e a beleza das imagens quase nos embebedam de crença e adoração da realidade ali projetada, ao estilo de uma seita religiosa.
O espaço pensado para ser visitado de seguida encontra-se num andar superior e reune várias peças disponíveis na internet — blogs ou motores de busca, por exemplo. Parece que a colocação destas obras num patamar menos acessível espelha o seu difícil acesso à condição de arte.
A última sala junta vários filmes que foram feitos no período histórico correspondente aos primeiros anos da vídeo-arte. Esta divisão parece mais antiga que tudo o resto, quer seja pelas escolhas feitas para a reprodução dos filmes, quer seja pelas próprias imagens neles exibidas: definição, temática e cor. Somos, no entanto, confrontados com alguns tipos de abordagens que continuam a ser hoje experimentadas em vídeo-arte: estímulos sensoriais, no caso dos filmes experimentais, imagens recolhidas por câmaras de vigilância, e a estética do vídeo-jogo, por exemplo. A exposição termina assim com uma componente já anunciada no início: o jogo (Pacman), tecendo uma hiperligação temporal que nos faz pensar nos ciclos inerentes às ideias de progresso e tradição. A característica unidirecional que muitas vezes é associada à evolução do ser humano e da tecnologia, é aqui questionada pelo curador, que opta por começar a exposição com obras mais recentes e terminar com o passado, que se revela, afinal, também ele atual.
A exposição apresenta-se, de uma forma global, como a própria Internet que a motivou: cacofónica e eufórica, cheia de cor. A imaterialidade nela explorada e elogiada — a da luz, do som e da imagem — é, no entanto, ao longo da visita, tornada frágil pela consciência da sua grande dependência de uma componente material funcional, quer seja a do(s) seu(s) suporte(s) como a do(s) seu(s) aparelho(s) gerador(es). Recuperamos, assim, a noção de corpo físico dentro da lógica do digital.

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