Sobre o palco urbano do “Largo da Misericórdia” em Lisboa,
desce de guindaste um Padre António Vieira de toneladas de bronze, rodeado de
três indígenas nus. Mês de Julho, ano da graça de 2017. O Padre António Vieira
já terá pregado a palavra de Deus e glorificado a língua portuguesa há mais de
três séculos e agora, de acordo com as notícias, cumpre-se finalmente a justa
homenagem há muito adiada de dar a este vulto da língua pátria imagem e lugar
condignos na cidade.
Capturas de ecrã sobre vídeo
da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Um grupo de cidadãos – o grupo “Descolonizando” - insurge-se
contra tão anacrónica representação do imperialismo colonialista português. Visão
paternalista do evangelizador ocidental a salvar os pequenos selvagens que pelos
vistos ainda vão nus. Um outro grupo, de extrema direita, impede a manifestação
de repúdio anticolonialista.
Extremismos e aproveitamentos políticos à parte, sabemos que
a obra inaugurada é da responsabilidade da Misericórdia de Lisboa e que tem o
beneplácito e júbilo da Câmara Municipal da cidade, entre outras entidades que
participaram no concurso para a escolha do artista, como foi o caso da Academia
de Belas-Artes.
Independentemente da justeza e merecimento do tributo ao
Padre António Vieira, impõe-se portanto a pergunta, pode um artista do século
XXI persistir no tema da glorificação do paternalismo colonizador, insistindo
na visão idealizada e fantasista do outro?! Um outro que é exótico e erótico
como no caso das pinturas de haréns e odaliscas que forravam as paredes europeias
de oitocentos ou um outro ainda que é visto como o bom selvagem mas que carece da nossa superior moral e consequente doutrinação
ocidental.
Porque como sabemos e escreve Edward W. Said na sua obra
seminal Orientalismo: “A essência do
orientalismo é a distinção inextirpável entre a superioridade ocidental e a
inferioridade oriental”.
No caso desta estátua agora depositada em Lisboa, parece
conservar-se em formol a ideologia que o autor descreve em 1978 através dos
relatos de um consul britânico no Egipto:
“O europeu é um raciocinador conciso; suas declarações de
facto são desprovidas de qualquer ambiguidade; ele é um lógico natural, mesmo
que não tenha estudado lógica; é por natureza céptico e requer provas antes de
aceitar a verdade de qualquer proposição; sua inteligência treinada trabalha
como a peça de um mecanismo. A mente do oriental, por outro lado, assim como
suas pitorescas ruas, é eminentemente carente de simetria. (...) seus
descendentes são singularmente deficientes de faculdades lógicas.”
Pode toda a carga histórica do eurocentrismo e da supremacia
ocidental passar incólume e ser mais uma vez glorificada na figura de um
benevolente ocidental doutrinando submissos indígenas? Pode um artista nosso
contemporâneo abster-se de pensar novas formas de criar?
Vasco Araújo, nos antípodas desta postura, tem baseado
grande parte da sua produção artística precisamente nas questões do
Orientalismo mas desta vez pelo reverso. O artista não replica modelos criativos
de sucesso no passado, pelo contrário, provoca-nos e obriga-nos a encarar de
frente a nossa herança comum como povo colonizador. Ainda que incómoda. Muito
incómoda, como é o caso que levantou num dos seus mais recentes trabalhos sobre
o Portugal dos Pequeninos e onde dá voz aos lamentos dos africanos
representados nesta instituição lúdica nacional que permanece a influenciar silenciosamente
gerações e gerações de crianças que continuam a visitá-la e a deparar-se com o
mesmo cenário que Salazar inaugurou em 1940.
Pode a arte exorcizar os fantasmas do colonialismo e o
silêncio complacente da contemporaneidade?
Capturas de ecrã sobre vídeo
de Vasco Araújo
Ou, atente-se em Ângela Ferrreira – entre muitos outros
artistas contemporâneos com obras já sólidas sobre o orientalismo e
pós-colonialismo. Também num trabalho de 2017 e que esteve exposto na Bienal de
Arte Contemporânea de Coimbra, a artista constrói uma escultura que recria a
engrenagem de transporte de uma das colunas do Templo de Luxor, apropriação
simbólica que ainda hoje permanece intocada no centro da Praça da Concórdia em
Paris, qual trunfo de uma caça ao Oriente, sublinhando que “a França é a
guardiã da História” como Napoleão quis deixar lavrado na nossa memória
colectiva com a sua “invasão científica” do Egipto.
O que fazemos nós, como produtores de cultura, do ADN cultural
que herdámos?
Foto CM
Referências:
SAID, Edward W, Orientalismo,
Companhia das Letras, 1978
vascoaraujo.org








Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.