terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Orientalismo - 2 Reconfigurações e 1 Anacronia


Sobre o palco urbano do “Largo da Misericórdia” em Lisboa, desce de guindaste um Padre António Vieira de toneladas de bronze, rodeado de três indígenas nus. Mês de Julho, ano da graça de 2017. O Padre António Vieira já terá pregado a palavra de Deus e glorificado a língua portuguesa há mais de três séculos e agora, de acordo com as notícias, cumpre-se finalmente a justa homenagem há muito adiada de dar a este vulto da língua pátria imagem e lugar condignos na cidade.



Capturas de ecrã sobre vídeo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

Um grupo de cidadãos – o grupo “Descolonizando” - insurge-se contra tão anacrónica representação do imperialismo colonialista português. Visão paternalista do evangelizador ocidental a salvar os pequenos selvagens que pelos vistos ainda vão nus. Um outro grupo, de extrema direita, impede a manifestação de repúdio anticolonialista.
Extremismos e aproveitamentos políticos à parte, sabemos que a obra inaugurada é da responsabilidade da Misericórdia de Lisboa e que tem o beneplácito e júbilo da Câmara Municipal da cidade, entre outras entidades que participaram no concurso para a escolha do artista, como foi o caso da Academia de Belas-Artes.
Independentemente da justeza e merecimento do tributo ao Padre António Vieira, impõe-se portanto a pergunta, pode um artista do século XXI persistir no tema da glorificação do paternalismo colonizador, insistindo na visão idealizada e fantasista do outro?! Um outro que é exótico e erótico como no caso das pinturas de haréns e odaliscas que forravam as paredes europeias de oitocentos ou um outro ainda que é visto como o bom selvagem mas que carece da nossa superior moral e consequente doutrinação ocidental.
Porque como sabemos e escreve Edward W. Said na sua obra seminal Orientalismo: “A essência do orientalismo é a distinção inextirpável entre a superioridade ocidental e a inferioridade oriental”.
No caso desta estátua agora depositada em Lisboa, parece conservar-se em formol a ideologia que o autor descreve em 1978 através dos relatos de um consul britânico no Egipto:

“O europeu é um raciocinador conciso; suas declarações de facto são desprovidas de qualquer ambiguidade; ele é um lógico natural, mesmo que não tenha estudado lógica; é por natureza céptico e requer provas antes de aceitar a verdade de qualquer proposição; sua inteligência treinada trabalha como a peça de um mecanismo. A mente do oriental, por outro lado, assim como suas pitorescas ruas, é eminentemente carente de simetria. (...) seus descendentes são singularmente deficientes de faculdades lógicas.”

Pode toda a carga histórica do eurocentrismo e da supremacia ocidental passar incólume e ser mais uma vez glorificada na figura de um benevolente ocidental doutrinando submissos indígenas? Pode um artista nosso contemporâneo abster-se de pensar novas formas de criar?

Vasco Araújo, nos antípodas desta postura, tem baseado grande parte da sua produção artística precisamente nas questões do Orientalismo mas desta vez pelo reverso. O artista não replica modelos criativos de sucesso no passado, pelo contrário, provoca-nos e obriga-nos a encarar de frente a nossa herança comum como povo colonizador. Ainda que incómoda. Muito incómoda, como é o caso que levantou num dos seus mais recentes trabalhos sobre o Portugal dos Pequeninos e onde dá voz aos lamentos dos africanos representados nesta instituição lúdica nacional que permanece a influenciar silenciosamente gerações e gerações de crianças que continuam a visitá-la e a deparar-se com o mesmo cenário que Salazar inaugurou em 1940.

Pode a arte exorcizar os fantasmas do colonialismo e o silêncio complacente da contemporaneidade?




Capturas de ecrã sobre vídeo de Vasco Araújo

Ou, atente-se em Ângela Ferrreira – entre muitos outros artistas contemporâneos com obras já sólidas sobre o orientalismo e pós-colonialismo. Também num trabalho de 2017 e que esteve exposto na Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, a artista constrói uma escultura que recria a engrenagem de transporte de uma das colunas do Templo de Luxor, apropriação simbólica que ainda hoje permanece intocada no centro da Praça da Concórdia em Paris, qual trunfo de uma caça ao Oriente, sublinhando que “a França é a guardiã da História” como Napoleão quis deixar lavrado na nossa memória colectiva com a sua “invasão científica” do Egipto.

O que fazemos nós, como produtores de cultura, do ADN cultural que herdámos?

Foto CM

Referências:
SAID, Edward W, Orientalismo, Companhia das Letras, 1978
vascoaraujo.org



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