Ao entrar numa galeria, o espetador estabelece uma relação não apenas com as obras de arte, mas com todo o espaço expositivo envolvente, funcionando estes sempre em conjunto para uma experiência plena.
Tive o privilégio de ao entrar no museu Serralves, há uns meses, ser absorvida pelo trabalho de Daniel Steegmann Mangrané, artista catalão e autor de “Uma folha translúcida no lugar da boca”. Uma obra que prima pela sua elevada complexidade tanto ao nível formal como conceptual.
Ao entrar no espaço é notória a presença de algo inusitado, uma paisagem dentro da própria paisagem, uma obra site-specific que parte das imagens do filme de 16 mm realizado pelo artista entre 2009 e 2011 na Amazónia, também estas expostas na sala central. A instalação resultaria em algo vivo que de certo modo exige uma certa atenção por parte dos espetadores, que contemplam uma natureza que os rodeia ao longo do dia, mas que porque foi colocada em exposição se olha de modo diferente. Centralizada no espaço e irradiando uma luz esverdeada, o projeto convida a uma aproximação. A relação do espetador com a obra exposta é alterada, é vista não como um artefacto protegido do exterior, mas como o próprio exterior, quebrando esta barreira a que estamos preparados.
Após o confronto inicial com todo o panorama e ao percorrer a galeria, são visíveis na parede, as palavras da poetisa brasileira Stela do Patrocínio que nos remetem para um exercício de abstração, de questionamento da natureza humana, que potenciam inúmeras interpretações.
“Eu não queria me formar
Não queria nascer
Não queria tomar forma humana
Carne humana e matéria humana
Não queria saber da vida
Eu não tive querer
nem vontade pra essas coisas
E até hoje eu não tenho querer
nem vontade para essas coisas”
Percorrendo o espaço expositivo novamente e ao iniciar uma aproximação a este jardim de vidro com uma forma irregular e sinuosa, o espectador pode constatar que existe um ecossistema muito próprio que se desenrola à sua frente. Um ecossistema de plantas autóctones, provenientes do jardim de Serralves. Habitam neste pedaço de natureza, pequenos bichos-pau (Phasmida) e bichos-folha (Phyllium), insetos exóticos que fascinam pela forma tão perfeita como se misturam no meio envolvente, um mimetismo tal que o próprio movimento oscilante que realizam propicia uma fusão entre estes. O interessante nesta fusão não se prende apenas pelo seu impacto visual mas também pelo facto deste ecossistema ser auto dependente, algo que acaba por levantar questões em relação á relação que o próprio homem estabelece como o meio em que se movimenta e o circuito de dependências dos quais somos reféns no dia a dia.
A presença da janela, obra do arquiteto Siza Vieira, harmoniosamente integrada de modo a fazer comunicação com o parque, possibilitando a entrada de luz em todo o cenário enfatiza este contraste entre interior e exterior, entre o corpo e o espaço.
Através destas interações realizadas pelo espetador com toda a instalação podemos referir que o autor realizou uma obra de arte total, na medida em que todos os componentes (espetador, espaço e obra) se relacionam, através de diversos meios de expressão artística. Dentro destes meios é de salientar a presença da escultura que terá um papel fundamental a representar a passagem ao meio natural, que através do uso de vidro confere um caracter de proximidade. Através da sua forma sinuosa, por sua vez, é transmitida uma leveza que contrasta com a grande dimensão e consequente imobilidade do objeto.
O que apreendi da obra de Daniel Steegmann Mangrané e esta sua paisagem viva foi um necessário questionamento, uma quebra de qualquer barreira física entre o espetador e a instalação que o envolve. É ainda de sublinhar a presença da dicotomia entre o espaço fabricado e o espaço natural, que não entrando em confronto, coexistem no mesmo local.
Ao abandonar esta sala, e refletindo sobre a obra é possível apontar que Uma folha translúcida no lugar da boca, como resultado da multiplicidade de materiais, técnicas e estratégias a nível conceptual, propicia a que quem a vislumbra, inúmeras interpretações.
Esta exposição estará patente na Sala Central de Serralves até dia 7 de Janeiro de 2018.
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| Fotografia de Constança Babo |

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