-Recensão-
O filme
“20,000 days on Earth” é um drama/filme biográfico sobre Nick Cave.
Apresenta-se como um filme bastante honesto, quase como uma entrevista longa ao
artista. Começa com uma apresentação do dia a dia de Nick Cave, a partir da
qual se vai sendo desconstruída a rede de ideias e ideais que dão forma à obra
e ao pensamento do artista. Para além de abordar o lado mais banal da vida da
personagem central, o filme dá também ênfase àquelas que são as questões base
da existência de um artista/criador. Foi um filme que despoletou em mim algumas
dúvidas em relação à criação artística e à realidade do artista para com a
realidade que o envolve.

(Nick Cave)
O filme foi lançado em 2014 no Reino Unido, e recebeu alguns prémios. Alguns artistas que trabalharam no filme foram o próprio Nick Cave, Jane Pollard, Iain Forsyth e Warren Ellis.

(Nick Cave)
O filme foi lançado em 2014 no Reino Unido, e recebeu alguns prémios. Alguns artistas que trabalharam no filme foram o próprio Nick Cave, Jane Pollard, Iain Forsyth e Warren Ellis.
Para além
do valor que atribuo a este documentário pelo simples facto de permitir ao
espectador compreender um pouco melhor uma mente tão complicada e tão
fascinante, considero-o um ótimo catalisador de discussão e de debate em
relação à arte e ao que à arte em si implica. Foi com a minha colega de casa, Alexandra
Barbosa, que me vi debruçada sobre a arte como uma coletânea de experiências
que são alheias ao autor da obra, e foi a partir deste filme que me vi dentro
de uma conversa muito interessante, que penso que de certa forma posso traduzir
aqui, no contexto da recensão. Surgiram questões como: até que ponto é que um
artista tem o direito, ou deve sequer, utilizar as experiências que o rodeiam,
as experiências de outros, na sua obra? É possível sequer não o fazer, sabendo
que tudo o que passamos na vida implica outros (tendo em conta que mesmo a
solidão implica a não presença de alguém)? Ao traduzir as vivências – e as
memórias (algo que Nick Cave menciona também como uma das partes mais fulcrais
do processo criativo) o artista cria um escape, um lugar onde a imaginação, ou
pelo menos as limitações das capacidades sensoriais acabam por distorcer de
certa forma a realidade a transmitir através da arte. Este distorcer acaba por
proteger as experiências e identidades de terceiros à obra, mas observando a
plataforma que existe na sociedade moderna, a arte é exposta de uma forma muito
abrangente,e desta forma artistas como Nan Goldin, com as suas fotografias
extremamente pessoais que acabam por mostrar, através da arte, aquilo que é o
dia a dia dos amigos e conhecidos da artista. Pode dizer-se que a memória ativa
a arte pela transposição. Será esta transposição de vivências completamente
justa, tendo em conta a vida pessoal de cada indivíduo que está iminentemente
interligada ao artista?
Nick Cave
fala também sobre o papel do artista enquanto Deus, e enquanto uma encarnação
de algo maior. Fala da forma como a criação da arte nos aproxima de algo maior,
e de como o processo da criação da arte transforma o artista. Para além desta
auto-descrição do artista, atribui a si próprio o título de “canibal” – descreve-se
como alguém que absorve as experiências que o rodeiam e as ingere,
transformando-as em música. Este termo, tão agressivo e grave como é na
realidade, acaba por representar de certa forma o tema desta recensão. Até que
ponto é que a arte é justa para aquilo que representa, a forma crua como tantas
músicas e filmes expõe histórias e pessoas, cujas vidas passam a fazer parte da
memória do espectador? Será em forma de homenagem que as obras surgem, ou mais
como uma forma egoísta do artista projetar a sua realidade sem ter atenção à
explosão que causa ao seu redor e sem ter atenção à exposição que dá à vida de
terceiros?
A marca que
este filme deixou em mim-para além do louvor que dou ao artista por ser uma
pessoa tão culta e interessante de observar - foi uma grande dúvida em relação
à transposição de vivências para a arte, ao ponto de olhar até para obras
biográficas e me aperceber que toda a vivência de um ser humano implica dezenas
de outras vidas, que por sua vez estão carregadas de escolhas e atitudes
pessoais que se tornam arte, por meio de uma pessoa externa à vivência em si.
No fundo, a criação implica a correspondência entre o mundo do imaginário e do
real, e que a exposição ao mundo e a forma como o artista deixa nus aqueles que
o rodeiam não é necessariamente má, porque daí cresce a partilha, e nasce
empatia, algo que considero fundamental, e uma das principais qualidades que observo
na arte – a criação de empatia entre o espetador/obra.
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