quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Recensão - A obscura frieza de "O Sacrifício do Cervo Sagrado"


A materialização das lógicas exógenas à compreensão humana é o que vemos ilustrado em The Killing of a Sacred Deer, ou, em português, O Sacrifício de um Cervo Sagrado, do realizador grego Yorgos Lanthimos. O filme segue o quotidiano de uma família americana de classe média-alta, que entra numa espiral destrutiva de caos, induzida por um terceiro fator externo: o jovem Martin de 16 anos é o catalisador de uma série de acontecimentos que aderem ao cânone clássico da tragédia grega — mais não fosse este filme inspirado numa: a tragédia de Ifigénia.
Steve Murphy é um cardiologista cirurgião (Colin Farrel), casado com Anna (Nicole Kidman) e dois filhos, Bob (Sunny Suljic) e Kim (Raffey Cassidy). O dia-a-dia desta família começa a ser minado pela presença de Martin (Barry Keoghan), um adolescente que se tem encontrado com Steve cujas intenções são tão dúbias no início quanto o são no fim, isto porque apesar da quantidade de informação que é dada ao espetador poder servir para estipular teorias, é o caráter associal das narrativas de Lanthimos que nos roubam a dimensão humana às personagens dançantes na grande tela.




O realizador grego é conhecido por embutir nos seus filmes um fator profundamente desconfortável, estranho, alienígena. As palavras das personagens deambulam, conectadas, mas dissociadas das convenções morais e sociais que regem as conversas humanas. Conversas de circunstância acontecem sem qualquer propósito e no meio delas surgem intervenções que, no nosso universo, causariam no mínimo, desconforto.
Uma das maiores qualidades de O Sacrifício do Cervo Sagrado é certamente a subtileza e o cuidado com que o filme consegue gerar uma enorme quantidade de tensão e mistério. A trágica trama do filme consiste num dilema de contornos extremamente concretos que afetam um típico homem familiar de classe média-alta. É, porém, no vasto espaço da estilização e da forma que os aspetos cativantes do filme se concentram.
Se analisarmos de perto, o filme percorre as várias fases da tragédia grega: existe um desafio da ordem familiar quotidiana pré-estabelecida, a chamada Hybris, cuja relevância é descoberta ao mesmo tempo da Anagnórise, quando Martin conta a Steven revela que a sua família irá sofrer um destino macabro enquanto punição divina pela morte do pai de Martin às mãos de Steven. As peripécias estão presentes quando as doenças de ambos os filhos se agravam rapidamente e por fim, o clímax, que ocorre aquando do sacrifício de Bob, o “cervo sagrado”, que deve ser sacrificado como meio para remendar a ordem final. Está, porém, a meu ver, ausente uma fase da estrutura clássica da tragédia grega, a catarse. Por mais que procuremos, as personagens não atravessam esta fase, não existe um alívio ou paz após o conflito e consequentemente, o visualizador não sente este alívio. O espectador abandona o filme sem qualquer resolução positiva ou atar de pontas, as personagens atravessam o clímax mas não absorvem nada do mesmo. Este aspeto é extremamente importante para a impressão de desconforto e tensão com que o espectador sai do filme.
A nível técnico, Lanthimos recheou esta obra de artifícios que ajudam a criar esse ambiente trágico através de, por exemplo, planos que se fecham progressivamente acompanhados de música que cria um suspense inconclusivo e insatisfatório, numa clausura crescente extremamente claustrofóbica e indutora de ansiedade. As pistas que vão sendo dadas ao espetador sobre o que pode de acontecer são sempre erróneas, díspares. Não nos dão informação relevante sobre o desfecho e isso é uma escolha deliberada.
Lanthimos parece influenciar-se por Kubrick no sentido que esta longa metragem é recheada de elementos bizarros que compõem alguns dos aspetos mais cativantes do filme
O Sacrifício do Cervo Sagrado é certamente um ode ao que nos faz ir ao cinema, é um dos filmes que nos mantém enterrados no assento, agarrados aos apoios de braço, e que no final nos deixa mal tratados e com um sentido de ainda não termos acordado de um pesadelo vívido.

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