quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Sedmikrásky - RECENSÃO CRÍTICA



Daises (Sedmikrásky em checo) é um filme de 1966 escrito e realizado por Věra Chytilová. Este filme e toda a obra de Chytilová fazem parte do movimento de cinema New Wave checoslovaco que data dos anos 60. Este movimento, dirigido principalmente pelos estudantes da Film and TV School of The Academy of Performing Arts de Praga, cresceu como um manifesto contra não só a destruição deixada na República Checa pela Segunda Guerra Mundial e o domínio de Hitler que ainda se registava no país mas também contra o regime comunista de Stalin que se instalara no país e a censura (entre outros problemas) que trouxe consigo.

Daisies é um filme muito vivo desde o início que, tratando-se de um filme surrealista, esconde muitas mensagens atrás dos planos exuberantes. Apesar de Chytilová negar que o filme seja feminista, é impossível não sentir um certo manifesto na forma como as personagens são escritas. Logo no início do filme, uma das raparigas apresenta-se frustrada por ser só uma boneca para o mundo, mas sentir que é mais do que isso. Todas as ações que o par toma no filme parecem ser um desafio a esta mentalidade (que, claro, se refletia na realidade checa), as daisies correm pelo filme a agir "como nenhuma mulher devia agir", a comer agressivamente (em vez de de forma delicada), a roubar, a destruir propriedades... 
As duas raparigas são confrontadas com comentários como "quem me dera a mim ser jovem e bonita como vocês," que, mais uma fez, refletem uma crítica à mentalidade da sociedade que dita que uma mulher apenas se pode divertir quando é nova, mas logo a seguir deve arranjar um marido e uma família e lhes obedecer. A mulher é apenas isso - não nasceu para trabalhar, para ser a sua própria pessoa, mas para servir o homem.
Um dos elementos principais no filme que chamam o olhar para a tela é a comida. São inúmeras as cenas em que as personagens estão a comer de forma intensa, suja. Esta forma de comer parece satisfazer o observador como se conseguíssemos saborear a comida através da personagem. No entanto, este sentimento parece apenas durar uns momentos, transformando-se rapidamente numa espécie de repulsa ao ver a quantidade de comida que é desperdiçada pelas personagens. As cenas que parecem melhor representar esta corrente de emoções são quando um bolo coberto de creme, perfeitamente decorado, é posto em primeiro plano; vemos a mão de uma das personagens aproximar-se e sentimos um certo prazer com a previsão do que irá acontecer, tirar um pouco do creme e lamber, mas somos rapidamente cumprimentados pelo nojo ao ver a mesma personagem mergulhar a mão toda na sobremesa, destruindo-a por completo e simplesmente continuar com a sua vida. São muitas as cenas assim, em que há esse desperdício de comida que nos repulsa. A colocação destas cenas no filme podem ser atribuídas à falta de comida que havia na época no país que afetava toda a população de classes mais baixas. O filme retrata assim as injustiças sociais em que, enquanto uns viviam com rações e muito pouco, outros (as elites) viviam na luxúria, podendo ir a restaurantes a qualquer momento consumir quanto quisessem, desperdiçando comida que podia alimentar muitos.
O filme foi claramente feito para chocar - as ações das duas raparigas são sempre repulsivas e perversas. Elas não parecem ter empatia por ninguém; no filme, existe uma cena em que uma das daisies precisa de encontrar um número de telefone e elas começam a sua busca pelas paredes do quarto que estão cheias de rabiscos de milhares de números de telefone de diferentes homens. Uma mulher assim, que se envolve com tantos homens, não será aceite pela sociedade. Mas as daisies não querem saber, e talvez isso seja o mais libertador de todo o filme; elas vivem para si e para mais ninguém.
O filme acaba com uma cena em que as duas raparigas invadem um salão que estaria a ser preparado para um banquete e o destroem por completo, havendo até uma luta de comida. Corta para raparigas se afogando, suplicando que não querem ser más. No final, após a noite cair e elas se aperceberem do que fizeram (e a euforia ter passado) as duas juntam-se e tentam repor tudo como estava. Elas sussurram que "se formos boas e trabalhadoras, seremos felizes" enquanto limpam os estilhaços dos pratos e os tentam juntar, endireitam as cadeiras e raspam a comida destruída de volta para os respetivos tabuleiros. Esta cena parece ser como que o ponto baixo do caminho para a liberdade destas raparigas; elas parecem sucumbir ao que a sociedade diz que devem ser e fazer, pois ninguém as apoia, todas as condenam - ninguém as salva mesmo quando se estão a afogar. Depois de tudo,  após limparem o salão, as duas raparigas deitam-se na mesa e apenas dizem "estamos felizes, estamos as duas muito felizes"; no entanto, as suas faces não têm reação, estão imóveis, sem sorrir, silenciosas. Após concluirem que, apesar de felizes, isso não importa realmente, o candelabro acima da mesa cai e a cena corta para uma gravações de uma explosão seguida de uma frase que diz "este filme é dedicado a todos o que a fonte de indignação é uma sobremesa espezinhada". Chytilová desafia assim a audiência a ver mais no filme do que a repulsa pela comida ou as ações ridículas das raparigas - todo o filme é uma metáfora.

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